08 abril 2010

 

Aquilo de que se fala


É curioso observar como um facto (a pedofilia), que se tornou monstruoso na época contemporânea passou antes totalmente despercebido, ou foi relegado para um limbo de idiossincrasias pessoais a que não era conferido relevo especial ou, se o era, tinha apenas ressonâncias éticas que ficavam fechadas à chave na consciência de cada um ou no silêncio sepulcral das instituições; às vezes, aureolado de uma espécie de ingénua poeticidade literária ou, nos casos mais veementes, de uma retórica de provocação. Basta ler, entre muitos outros, alguns textos de Teixeira Gomes (já uma vez aqui referi um conto, inserto em Agosto Azul), de António Botto, de Luís Pacheco, dos surrealistas em geral. Entre os estrangeiros, aí está o autor venerado por crianças e adultos, Lewis Carol (pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson), matemático e eclesiástico, cuja paixão por uma menina de 10 anos o levou a escrever Alice no País das Maravilhas, agora tão apreciado também no cinema Não quero citar o Marquês de Sade, que é, evidentemente, um caso à parte, que incluiu crianças no universo tenebroso e indistinto dos objectos da sua luxúria ficcional.
O certo é que o fenómeno da “pedofilia”, cuja definição e limites talvez não sejam muito claros na actual maneira de encarar as coisas (a lei penal não fala de nenhum crime de pedofilia, mas de «abuso sexual de crianças») não tinha assento nos códigos penais como crime autónomo, em que a vítima é uma criança, considerando-se como tal, na nossa legislação, um indivíduo menor de 14 anos.
A este propósito, talvez valha a pena referir um texto do meritório crítico António Guerreiro publicado no “Expresso” de 20 de Março passado e que se intitula: «Sobre uma figura nova, sexo-criminal: o pedófilo”.
Diz o texto:


Numa recente crónica no “Público”, a propósito dos casos de pedofilia que estão a pôr a Igreja Católica em causa, Paulo Varela Gomes sublinhava esta verdade elementar: é uma constante a utilização sexual das crianças em seminários, internatos, orfanatos, etc.. Novo é só o facto de se ter começado a falara nisso. Como é que se iniciou recentemente esta “vontade de saber”? Os factos começaram a vir à luz do dia, porque se construiu uma figura nova, sexo-penal, que não existia: o pedófilo. Dito de outra maneira, assistimos nos últimos anos à criminalização e à absoluta rejeição moral de uma prática sexual que antes não era objecto de nomeação e criámos a partir dela uma tipologia de indivíduos que não existia. Algo que se tornou entretanto repugnante podia, até há pouco tempo, ser descrito como belo e virtuoso. Leia-se um livro editado em França, em 1980, de um escritor já morto, chamado Tony Duvert (“L’enfant au masculin”, na mais que respeitável editora Minuit), para perceber que aquilo que hoje sabemos de maneira tão evidente era desconhecido, porque não era objecto de um discurso, não tinha nome, não suscitava perguntas. Nem aos sexólogos, nem aos criminólogos.»

Pergunto: Por que se criou essa figura nova? Por que se deu um nome a esses factos já muito velhos e se criou um discurso novo sobre eles? Não será porque se foi forjando uma nova consciência axiológica, que tem a ver com um outro estatuto (pessoal, social e jurídico) da criança? A criminalização de um facto não surge sem mais nem menos, sem uma consciência ético-social da sua negatividade já suficientemente amadurecida na comunidade.





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