20 abril 2010

 

Entre o céu e a terra

O impedimento do tráfego aéreo faz-me lembrar um conto de Júlio Cortázar incluído em todos os fogos o fogo, que se entretece à volta de um gigantesco engarrafamento nas estradas de acesso a Paris, no termo de um fim-de-semana. A paralisação por alguns longos dias imposta pelo engarrafamento gera relações insólitas de proximidade e generosidade, de improvisada organização de entreajuda, de ligações sentimentais fortuitas e também de algum comércio espúrio, a par de situações extremas de desespero, entre os condutores e ocupantes dos veículos, que, de meios de locomoção rápida, se transformam em extenuantes empecilhos. Na hora do desbloqueamento, todos voltam a correr em direcção às luzes da cidade, ignorando-se uns aos outros, perdendo-se uns dos outros e sem que soubessem o para quê daquela corrida.
Naquele tempo, ainda não se imaginava o volume impressionante que o tráfego por cima das nossas cabeças viria a atingir e como uma nuvem espessa de cinzas lançada por um vulcão, num pequeno país falido por uma crise financeira mundial, poderia acarretar um tão grave distúrbio, com milhares de pessoas em desespero nos aeroportos, impedidas de regressar aos seus países, arrastando malas de rodinhas pelos lajedos de mármore, agarrando-se a telemóveis para desabafarem as suas angústias ou vencerem ilusoriamente as distâncias, empinando constantemente as cabeças para os painéis de informação, colocados ao alto, atirando os corpos fatigados para bancos de espera incerta e dormindo em cima de malas. Suponho que, em muitos casos, se gerarão solidariedades inesperadas, relações cordiais entre pessoas que compartilham da mesma sorte, convivialidades fortes entre indivíduos que falam línguas diversas e habitam diferentes pontos do globo, numa mistura de raças, línguas, caracteres, etnias.
Porém, o desespero vai vencendo, a vida rotineira de todos os dias vai reclamando as suas urgências, a economia, afinal tão dependente das rotas aéreas, começa a contabilizar prejuízos, pressões de todos os lados, com as companhias aéreas à cabeça, querem romper o bloqueio, arriscando voos mesmo com a ameaça da espessa nuvem vulcânica, que supostamente danificaria os aviões e poderia causar acidentes graves, mas que, bem vistas as coisas, talvez não seja tão perigosa como a supunham de princípio. Entretanto, muitos põem-se em debandada, utilizando meios de transporte já quase banidos em longas viagens, como comboios, camionetas e até táxis, fretados por alguns para fazerem distâncias loucas, a troco de pequenas fortunas.
Todavia, uma grande percentagem ainda continua à espera dos aviões, que as companhias aéreas querem repor em circulação o mais depressa possível. Todos esses continuam a perscrutar o céu, à espera que de lá venha a salvação, não já a salvação transcendente da vida eterna, mas a salvação comezinha do dia-a-dia. Quem diria que o céu havia de ser mesmo a esperança do nosso tempo?





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