17 outubro 2011

 

"Quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos"

Saiu hoje no DR o acórdão do Tribunal Constitucional (nº 396/2011) que se pronuncia sobre os "cortes" de 2011 (os cortes socráticos...).
Como cidadão e como vítima (dos cortes e do acórdão do TC), julgo-me no direito de tecer algumas considerações sobre a doutrina expendida, que certamente vai servir de base à legitimação dos "cortes" já anunciados e de todas as amputações que este ou futuros governos entendam por bem aplicar-nos a nós, os que "recebemos por verbas públicas"...
Deixemos de lado toda a parte inicial do acórdão e concentremo-nos na análise feita pelo TC dos dois maiores obstáculos ao já esperado beneplácito àquelas primeiras medidas cortantes: os princípios da confiança e da igualdade.
Quanto ao da confiança, também não vale a pena perder muito tempo. Ficamos logo a saber que esse pricípio é válido para tempos felizes, tempos de abastança, mas que em tempos de vacas magras não há que contar com ele...
Vamos pois ao princípio da igualdade. Aqui a coisa fiava mais fino. Começa o TC por reconhecer (comentarei entre parênteses rectos):

"Ainda que não proceda a alegação dos requerentes, subsiste, todavia, uma questão atinente ao princípio da igualdade, tendo a ver com o facto de os destinatários das medidas de redução serem apenas as pessoas que trabalham para o Estado e demais pessoas colectivas públicas(...) Ficam de fora os trabalhadores com remunerações por prestação de actividade laboral subordinada nos sectores privado e cooperativo, os trabalhadores por conta própria, bem como todos quantos auferem rendimentos de outra proveniência. [Bem visto, sem dúvida]
Pode questionar-se se, havendo necessidade de impor sacrifícios patrimoniais em tutela de um interesse público, que a todos diz respeito, não deveriam ser afectadas, por igual, as esferas da generalidade dos cidadãos, com idêntica capacidade contributiva. Tal resultaria do princípio da igualdade perante os encargos públicos, que exige que os sacrifícios inerentes à satisfação de necessidades públicas sejam equitativamente distribuídos por todos os cidadãos; todos os cidadãos deverão contribuir de igual forma para os encargos públicos à medida da sua capacidade contributiva. [Até aqui tudo parece correr bem para os funcionários públicos...]
Invocar, a propósito de medidas de consolidação orçamental, o princípio da igualdade perante os encargos públicos, princípio estruturante da nossa constituição fiscal, é o mesmo que sustentar que, por exigência dp princípio da igualdade, a correcção dos desequilíbrios orçamentais tem necessariamente que ser levada a cabo por via tributária, pelo aumento da carga fiscal, em detrimento de medidas de redução remuneratória. Será assim? [Aqui as coisas começam a entortar decididamente para os "servidores" do Estado... embora se reconheça ainda que...]
É indiscutível que, com as medidas em apreciação, a repartição dos sacrifícios impostos pela situação excepcional de crise financeira não se faz de igual forma entre todos os cidadãos com igual capacidade contributiva, uma vez que elas não têm um alcance universal, recaindo apenas sobre as pessoas que têm uma relação de emprego público. Há um esforço adicional em benefício de todos, em prol da comunidade, que é pedido exclusivamente aos servidores públicos [pagamos, mas somos retribuídos com esta "medalha de lata", a do sacrifício "em prol da comunidade"... mas vejamos o que vem a seguir]
Também não sofre controvérsia que não estava excluída a tomada de medidas de natureza tributária, conducentes à obtenção de uma receita fiscal de montante equivalente ao que se poupa com a redução remuneratória. E, nessa hipótese, todas as pessoas que auferem iguais rendimentos colectáveis ficariam sujeitas a um igual sacrifício do ponto de vista da sua contribuição para os encargos públicos. [Muito bem, bravo! Mas, porém, todavia, contudo...]
Mas esta dupla constatação de forma alguma equivale à fundamentação do cabimento do princípio da igualdade perante os encargos públicos, quando se trata de apreciar a constitucionalidade de medidas estaduais que visam a contenção do défice orçamental dentro de determinados limites. A fundamentação de que aquele princípio tem uma projecção constringente nesta matéria (não como princípio estruturante, mas como princípio impositivo do sistema fiscal), predeterminando o tipo de soluções disponíveis e retirando ao decisor político democraticamente legitimado qualquer margem de livre opção é algo que fica por fazer. (...)
Não cabe, evidentemenete, ao Tribunal Constitucional intrometer-se nesse debate [das medidas mais convenientes a tomar para redução do défice], apreciando a maior ou menor bondade, deste ponto de vista, das medidas implementadas. O que lhe compete é ajuizar se as soluções impugnadas são arbitrárias por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos. [Nem mais! Na "mouche"! Bravo! Porém...]
Não pode afirmar-se que tal seja o caso. O não prescindir-se de uma redução de vencimentos, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de actuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador. Intentando-se, até por força de compromissos com instâncias europeias e internacionais, conseguir resultados a curto prazo, foi entendido que, pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata, sendo, nessa medida, indispensável. Não havendo razões de evidência em sentido contrário, e dentro de "limites de sacrifício", que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardam, é de aceitar que essa seja uma forma legítima e necessária, dentro do contexto vigente, de reduzir o peso da despesa do Estado, com a finalidade do reequilíbrio orçamental. [Estão a ver o malabarismo argumentativo? Não se trata afinal de "encargos públicos", mas sim de "redução de despesa do Estado", Estado esse que pode proceder à redução de qualquer forma que lhe venha à cabeça, sendo equivalente, e constitucionalmente neutro, poupar na compra de automóveis, nas inaugurações, banquetes, etc., ou reduzir os vencimentos dos seus "servidores"... que afinal não são cidadãos como os outros, repare-se no que vem a seguir...] Em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido a essa categoria de pessoas - vinculada que ela está, é oportuno lembrá-lo, à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual. [Asseguro-vos que isto está lá escrito! Ignorava eu que o meu vencimento de "servidor" - ou servo? - do Estado estava à disposição do patrão, que lá pode ir buscar o que quiser quando achar que é preciso!!!]

Um acórdão precioso para a guerra aos funcionários públicos de que hoje fala André Freire no "Púlico".





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