24 julho 2012

 

Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional


No rescaldo dos efeitos produzidos pelo acórdão do TC e depois das declarações do seu presidente à Antena 1, muita gente, incluindo membros do governo, de que se destaca Paulo Portas, continua a insistir na questão das diferenças entre os trabalhadores do sector público (nomeadamente funcionários públicos) e dos trabalhadores do sector privado, para invalidar o julgamento efectuado pelo tribunal com base na violação do princípio da igualdade.

A insistência em tal questão tem um duplo objectivo que parece óbvio: por um lado, insinuar no público, à força de repetição, que o acórdão se baseou no facto de os cortes não abrangerem os trabalhadores do sector privado, mas só os funcionários públicos, por aí tendo dado como violado o princípio da igualdade; por outro, inculcar, contra o decidido, que há considerável diferença entre um e outro sectores, com vantagem para o sector público, prosseguindo-se, assim, na tentativa que teve início no consulado de Sócrates, de criar artificialmente uma luta de classes entre os empregados públicos e os trabalhadores do sector privado, na mira de desvalorizar os primeiros, reduzir o peso do Estado e reconduzi-lo às funções clássicas do Estado liberal: polícia, forças armadas, poder executivo, legislativo e judicial.

Ora, basta ler o acórdão em foco com a atenção devida para vermos que a sua fundamentação não foi a apontada.

Em primeiro lugar, não foram apenas os funcionários públicos (chamemos-lhes assim por comodidade) os abrangidos pelos cortes de subsídios de férias e de Natal; foram também os reformados ou pensionistas, quer a sua origem fosse do sector privado, quer do sector público. Aqui, já não valia a apregoada diferença entre os sectores. A razão está em ser o Estado, através da Segurança Social, a pagar a essas pessoas.

Em segundo lugar, o acórdão do TC não deixou de reconhecer que há algumas diferenças entre os trabalhadores do sector público e do sector privado; todavia, não avalisou esse fundamento, indicado no Orçamento do Estado para justificar a medida, como adiante se explicará.

A justificação da Lei do Orçamento é a de que os trabalhadores do Estado e outras entidades públicas beneficiam em média de retribuições superiores às do sector privado e gozam de uma maior garantia no que diz respeito à segurança no emprego.

Em relação à primeira (o nível de retribuições), o TC não a aceitou sem reservas, com o carácter de evidência com que foi apresentada, sobretudo por ser inoperante uma comparação feita apenas com base em termos médios, sem levar em conta a especificidade de funções de cada sector de actividade, e ainda porque a simples comparação, baseada no referido critério, seria sempre insuficiente para justificar a oneração apenas de uma classe de profissionais.

No que diz respeito à segunda, reconhecendo embora uma ainda subsistente maior segurança no emprego dos indivíduos que têm vínculo funcional ao Estado, o TC não a considerou como tendo relevância para justificar a discriminação dos que recebem por verbas públicas.

Isto porque o corte dos subsídios de férias e de Natal assenta no nível remuneratório das categorias atingidas e em proporção dos rendimentos auferidos, pelo que não há razão suficiente, do ponto de vista da invocada desigualdade entre os dois sectores, para discriminar os trabalhadores do sector público sobre os do privado. Se o corte incide sobre o nível remuneratório e proporcionalmente ao que se ganha, então não se justifica que os que percebem rendimentos do sector privado, às vezes de nível muito superior aos do sector público, fiquem excluídos da medida.

A verdadeira razão fundamentadora desta, enquanto restritamente aplicada aos titulares de rendimentos auferidos pelo exercício de funções públicas e pensionistas reside apenas na sua eficácia, ou seja na rapidez e certeza relativamente à obtenção de resultados, numa conjuntura em que se torna necessário reduzir rapidamente o défice. Porém, a eficácia tem limites do ponto de vista da igualdade proporcional entre os cidadãos e esses limites mostram-se ultrapassados, quando comparados os sacrifícios impostos aos funcionários públicos e pensionistas e aos restantes cidadãos que auferem rendimentos do sector privado, considerando as medidas que têm vindo a onerar os primeiros (cortes de vencimentos, congelamentos salariais, ablação de subsídios de férias e de Natal), implicando uma significativa redução dos vencimentos reais e impondo-se ao longo de vários anos, com efeitos cumulativos.

Daí a violação do princípio da igualdade proporcional.



Ora, o acórdão do TC, se pôs em confronto os trabalhadores com vínculo laboral ao Estado e os trabalhadores do sector privado, foi porque a Lei do Orçamento de Estado começou por fazer a distinção entre «a situação de quem tem uma relação de emprego público e os outros trabalhadores» para, fazendo avultar uma pressuposta desigualdade, baseada em dois níveis avaliados em termos genéricos e um deles – a segurança no emprego – aparecendo como um benefício ou mesmo como uma benesse, que teria de ser compensada com sacrifícios, quando se trata de um direito constitucional de todos os trabalhadores, onerar com cortes de subsídios de férias e de Natal apenas a categoria dos trabalhadores de emprego público.

O TC, embora reconhecendo essa diferenciação em certos aspectos, não a avalisou enquanto fundamento suficiente de uma discriminação razoável e materialmente justificada entre trabalhadores e agentes com vínculo ao Estado e titulares de rendimentos provenientes de actividade do sector privado, para efeitos de oneração, apenas dos primeiros, com cortes de subsídios de férias e de Natal. Aliás, como se viu, nem só os trabalhadores da função pública e outros agentes da Administração foram atingidos com a medida, mas também cidadãos que por serem reformados recebem pensões pagas pelo Estado.

Por outro lado, nada no acórdão permite considerar que a solução postulada ou sugerida pelo TC (porque nem sequer tal lhe competia) será a de estender os cortes de quaisquer subsídios aos restantes trabalhadores do sector privado, a fim de ser restabelecido o princípio da igualdade. O que nele se diz é que «poderia configurar-se o recurso a soluções alternativas para a definição do défice, quer pelo lado da despesa», como por exemplo, as medidas que constam dos memorandos de entendimento para a execução do Programa de Assistência Económica e Financeira, «quer pelo lado da receita (v. g., através de medidas de carácter mais abrangente e efeito equivalente à redução de rendimentos)».

Ora, esta formulação permite considerar o recurso a soluções pelo lado da despesa e daí que o presidente do TC, na sua entrevista à Antena 1, legitimamente e em interpretação pessoal do aresto, tenha mencionado, também a título de exemplo, despesas prescindíveis, como as relacionadas com os subsídios a partidos políticos, que, segundo notícias vindas na imprensa, têm sido canalisadas, em parte, para objectivos diferentes daqueles para que são atribuídos, e pelo lado da receita, através de medidas de carácter mais abrangente, tendo o presidente do TC, na citada entrevista, referido, igualmente a título de exemplo, a tributação do capital.

E por que não? O acórdão não fala nisso, como se apressaram a dizer certos comentadores? Pois não, mas é uma leitura possível. «Medidas de carácter mais abrangente» são aquelas que incidem sobre um leque, o mais alargado possível, de cidadãos, proporcionalmente aos respectivos rendimentos. Aliás, o acórdão do TC refere explicitamente «a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes». Por conseguinte, não há razão para excluir medidas sobre os rendimentos provenientes de outras fontes, que não exclusivamente do trabalho dependente, nestas se incluindo sem esforço os rendimentos do capital.

Diga-se, por último, que o presidente do TC votou contra o acórdão, na medida em que considerou que só seria de julgar inconstitucional, na sua perspectiva, a suspensão continuada (isto é, acumulado ao longo de vários anos, como previsto no Orçamento) dos subsídios de férias e de Natal. No mesmo sentido votou um outro juiz – o conselheiro Vítor Gomes. Totalmente contra votou apenas uma conselheira – Maria Lúcia Amaral.

Os restantes três conselheiros que fizeram declarações de voto fizeram-nas no sentido de os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se deverem restringir apenas ao subsídio de férias deste ano, pelo que o próximo subsídio de Natal já estaria sob a alçada daqueles efeitos.



Um tão significativo consenso a respeito da inconstitucionalidade da suspensão dos subsídios (só um voto contra, se considerarmos que só uma conselheira votou contra a decisão, quer na perspectiva do corte de subsídios para este ano, quer para os anos seguintes, com efeitos acumulados) há-de por força traduzir uma sintonia de posições que não tem explicação na caluniosa afirmação de que os juízes votaram em causa própria, porque são funcionários públicos. Esse tipo de afirmações só desacredita e deslegitima um órgão de soberania tão importante para o funcionamento da democracia. Quem as faz não olha a meios para lançar o descrédito sobre as instituições, quando estas não servem os seus interesses ou os seus objectivos ideológicos.






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