16 agosto 2012
Repescando
Direitos sacrossantos
Eduardo
Lourenço, num livro a todos os títulos notável, como todos os que escreve e nos
deixam esmagados sob o peso de tanta lucidez, retratou os tempos conturbados,
sem bússola, confrangedoramente marcados pela perplexidade, que são estes de
implosão de todos os valores em que julgávamos (os da minha e de algumas
gerações precedentes) assentar, talvez de uma forma demasiado definitiva, uma
ordem mais justa, aquilo que talvez merecesse verdadeiramente o nome de «ordem
democrática». A esse livro chamou significativamente O Esplendor Do Caos.
Caos é a ordem
ou a desordem reinante. Um caos esplendoroso, quer dizer, ofuscante no seu
vazio. Um vazio que não é só o da «sociedade do espectáculo» de que falava Guy
Debors e que encontra no endeusamento da mercadoria a sua suprema razão de ser,
mas o resultante do esvaziamento de tudo o que de substancial, em termos (vá
lá!) de dignidade humana, se foi conquistando, com “muito sangue, suor e lágrimas”,
ao longo de séculos.
Estão neste caso
muitos, senão a maior parte, dos direitos que nos habituámos a considerar como
fundamentais ou direitos humanos e que como tais foram consagrados nas
constituições e em convenções internacionais. Como dizia Eduardo Lourenço,
agora pedem-nos que abdiquemos desses direitos. Mas não só nos pedem isso,
porque o caminho da inversão foi entretanto progredindo. Pedem-nos que
exautoremos como condenável tudo o que fez a exaltação desses direitos.
Para mais
facilmente quebrarem as resistências com que ainda nos apegamos a eles,
arranjaram um adjectivo-anátema: «sacrossanto». São os “sacrossantos direitos
adquiridos”. Chamam-lhes «sacrossantos» para os diabolizarem, os novos
sacerdotes do ideal da precariedade.
Parece escrito hoje, não parece?
Mas não. Foi escrito por mim no Jornal de Notícias de 23/06/05, em pleno consulado de Sócrates.
E esta crónica que se segue?
Direitos e privilégios
Claro que é
preciso distinguir entre direitos e privilégios. O problema, na verdade, está
em confundir os direitos com privilégios e os privilégios com direitos.
Os verdadeiros
privilégios são de poucos e, porque de poucos, tendem à intangibilidade, como
se fossem direitos adquiridos para sempre. Estão rodeados de secretismo,
eriçados de muros de silêncio e bem escondidos das vistas alheias no meio de um
denso arvoredo. Quem tente esquadrinhá-los, frequentemente é recambiado como intruso.
O último número da revista Visão dá
uma ideia dessa dificuldade.
A situação
contrária é a mais comum e a que tem actualmente mais encarniçados denunciadores.
Diz respeito aos melhores salários dos funcionários públicos, em relação aos
trabalhadores do sector privado; ao seu melhor sistema de saúde; ao seu beneficiado
regime de reforma.
Por uma questão
de simplificação, refiro-me ao sistema no seu todo, e não aos regimes
especiais, que também os há. São os direitos adquiridos neste âmbito (e falo
aqui de direitos em sentido genérico) que são taxados de privilégios. À conta
deles, atiram-se os trabalhadores do sector privado contra os funcionários
públicos, porque estes, afinal, como se tem descoberto, são os grandes
privilegiados deste país.
Há até quem não
hesite em considerar esses direitos como as «famosas conquistas revolucionárias».
E quem tome a estabilidade no emprego da função pública como um privilégio.
Qualquer dia,
todos os direitos adquiridos pelos trabalhadores em geral serão considerados
privilégios. Basta compará-los com os imigrantes, que fazem tudo muito mais barato
e com muito menos (ou mesmo nulos) direitos adquiridos.
Escrevi esta crónica também no Jornal de Notícias de 7//07/05, igualmente em pleno consulado de Sócrates.
Para se ver que nem tudo começou com a troika e o governo de Passos Coelho.
O curioso é notar o fantástico unanimismo que percorre um largo sector da nossa intelligentsia (por assim dizer): banqueiros, economistas, políticos, etc. A propósito do recente acórdão do Tribunal Constitucional, por exemplo. Ainda há dias, lá vinha mais um economista tanger a tecla do desastre que foi esse acórdão: João Salgueiro, segundo o qual é motivo para preocupação que um órgão de soberania não tenha compreendido a diferença entre os funcionários públicos e os trabalhadores do privado: melhores salários, estabilidade no emprego, blá, blá, blá.