29 setembro 2012
Liberdade de expressão e fundamentalismo
A questão da crise em
que estamos mergulhados tem-me absorvido completamente a atenção e, por isso,
tenho relegado para segundo ou terceiro plano outras questões.
É o caso, por exemplo,
da questão da liberdade de expressão face a recentes acontecimentos, como a
divulgação pelo You Tube de um vídeo
de autoria de um cristão copta, natural do Egipto, a residir na Califórnia, e
que denigre o profeta Maomé, apresentando-o como debochado e pedófilo.
Este vídeo provocou uma
onda de acções extremamente violentas em países árabes, africanos e asiáticos,
com multidões em fúria incendiando, saqueando, matando e espalhando o caos na
via pública. Os alvos atingidos são sobretudo interesses e cidadãos americanos.
Os actores são fundamentalistas islâmicos, que bramem e manifestam a sua cólera
como um rastilho mortífero que se fosse espalhando rapidamente por uma vasta
corda de países muçulmanos.
Mais recentemente, um
outro indivíduo de origem francesa resolveu replicar o gesto do autor do vídeo,
publicando caricaturas de Maomé na revista Charlie
Hebdo , com isso deitando mais petróleo para a fogueira.
Eu acho que há aqui
duas atitudes fundamentalistas contrapostas.
De um lado, estão os
radicais islâmicos, os adeptos do chamado islão político; do outro, os
fundamentalistas do direito à liberdade de expressão.
Os primeiros não
toleram qualquer ataque aos seus ícones, aos seus símbolos e aos seus dogmas
religiosos. Mais: não toleram sequer que outra verdade se oponha à verdade por
eles defendida; não toleram o outro, o
diferente, a alteridade em matéria de religião e, mesmo, outra verdade e outra
lei, que não sejam a verdade e a lei da sua religião, confundindo o espaço
sagrado com o espaço profano. É o totalitarismo religioso. É o campo aberto do sagrado violento, para empregar uma
expressão do filósofo Gianni Vatimo, todavia aplicada a outro contexto (Acreditar Em Acreditar).
Os segundos sacralizam
(sem qualquer sentido metafórico) a liberdade de expressão e entendem que tudo
deve ser sacrificado a essa divindade, sejam quais forem as consequências. No
limite, usam-na não como veículo do pensamento, mas como um fim em si mesmo ou
como um brinquedo caprichoso; não como forma articulada de exprimir uma ideia,
uma emoção, um sentimento ou um simples desabafo, mas como puro instrumento de agressão.
Não vi o vídeo passado
no You Tube nem as caricaturas
publicadas na revista Charlie Hebdo,
mas, a acreditar em tudo o que se tem dito e escrito, tratou-se, em ambos os
casos de pura provocação e, mesmo de agressão a sentimentos religiosos.
Estamos habituados, no
Ocidente, a ataques fortíssimos aos dogmas, ícones sagrados e sentimentos
religiosos dos crentes, em particular dos cristãos e católicos. E, mesmo, à
pura blasfémia, ao ultraje da própria divindade. Tutela-se a liberdade de
consciência e de culto, mas não, como disse, os dogmas e os sentimentos
religiosos dos fiéis de qualquer credo, ainda que estes sejam feridos de forma
grosseira ou até gratuita.
Claro que isto custou
muita dor, suor e lágrimas, muitas mortes, fogueiras inquisitoriais,
selvajarias de todo o género. O cristianismo e em particular o catolicismo já tiveram
a sua fase de fundamentalismo institucionalizado, durante séculos. Em nome da
verdade única da religião católica, perseguiram-se, de uma maneira infame, os
crentes de outras religiões, sobretudo os islamitas. Uma luta sem tréguas, que
passou por revoluções como a Revolução Francesa, levou à secularização da
cultura e à laicização do Estado, à separação do espaço sagrado do espaço
profano, à tolerância religiosa, permitindo a convivência de todas as
religiões.
Essa obra de laicização
não terminou; continua nos nossos dias, como mostra, entre outros, Jacques Le
Goff (“Clérigo/Leigo”, Enciclopédia
Einaudi, vol. 12).
Ora, os países
muçulmanos não tiveram nenhuma revolução francesa, nem um forte movimento de
laicização, que fosse capaz de separar o sagrado do profano, secularizar a
cultura, separar a Igreja do Estado e relegar a religião para a esfera do
privado e das opções de cada um. É provável que esta seja uma visão
ocidentalizada e eurocêntrica, que não tem em conta todo o património cultural
desses povos, nem o historial de humilhações que o Ocidente lhe tem infligido
ao longo dos séculos.
Com esta notação
relativista, aceitemos que essa é uma das causas históricas, mas não é a única
que explica a emergência do fundamentalismo islâmico, com contornos muito
específicos nos nossos dias. Mas esse fundamentalismo não é a característica
dominante da religião muçulmana, nem dos povos islâmicos. É apenas o traço
característico de uma facção radical. São os adeptos dessa facção que têm
reagido de uma forma absolutamente inaceitável, desproporcionada e
injustificada aos ataques desferidos ao profeta Maomé.
É evidente que não deve
haver qualquer tipo de contemplação ou de submissão perante tais actos de
vandalismo e de cegueira e que a liberdade de expressão deve ser defendida e
afirmada face a essa intolerância religiosa, mesmo quando o resultado dessa
liberdade se evidencie como paupérrimo do ponto de vista das ideias, da
argumentação ou do valor estético. Atitude contrária poderia ter como resultado
abrir-se uma porta à censura religiosa e à possibilidade de se lançarem na
fogueira obras e autores por interposição de critérios mais ou menos
arbitrários. Lembremo-nos do que aconteceu com Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, agora tão evocado a
propósito da autobiografia que conta o pesadelo vivido pelo autor (Joseph Anton).
Porém, a atitude de
fundamentalistas que, a coberto da liberdade de expressão, apenas pretendem
provocar a ira dos fundamentalistas islâmicos parece-me tão insensata e
irresponsável como a dos que incendeiam, destroem e matam em nome do carácter
intocável das suas concepções religiosas.