21 outubro 2012
Um amigo partiu
Sim, morreu um amigo,
mas como dizê-lo se a incredulidade ainda mora em nós e há-de morar por muito
tempo, até que a ausência faça sentir o seu peso e se transforme em memória
magoada? Como dizê-lo com palavras (com
que palavras e sem que palavras?), com o encadeamento das frases, os
efeitos do discurso, a literatura (a boa e a má literatura?)
Manuel António Pina
(pois está bom de ver que é dele que falo) costumava dizer (costumava ou
costuma?) que um poeta, quando se põe a escrever sobre a morte de um amigo, ao
chegar ao terceiro verso, já está mais preocupado com a escrita do poema, do
que com a morte do amigo. Há certas alturas, eu atrever-me-ia a dizer, em todas
as situações vitais ou existenciais, em que só o silêncio fala. É o infalável que fala.
Num universo saturado
de palavras e de gestos teatrais, Já não
é possível dizer mais nada/mas também é impossível ficar calado.
Manuel António Pina foi
(é) um grande poeta, um grande e original contador de histórias infantis
(infantis? Ele não tolerava esse adjectivo, porque dizia que não escrevia para a
infância, mas para a criança que existe em todo o homem e em toda a mulher – Brincarei ainda na infância/lembrando-me
agora?), um contista e novelista singular (Os Papéis de K, lembram-se?), um inigualável cronista, de farpa
certeira (Manuel Ramos, que foi director do Jornal de Notícias dizia há muitos
anos atrás: O Pina é o maior cronista da
nossa imprensa, ainda ele não era referenciado como tal, pois só o viria a
ser na última fase com as crónicas diárias na última página do JN, pelas quais
granjeou fama e popularidade, ele que se sentia contrafeito em ambas).
O Manuel António Pina
foi isso tudo e foi, inesperadamente (porque um pouco contra um certo stablishement literário) , “Prémio
Camões”, entre outros prémios que obteve. Já o sabemos. Para completar o
florilégio da retórica, “faz muita falta à nossa cultura”. Mas o que me
interessa agora, egoisticamente, é a falta que ele me faz, que ele me vai fazer,
como para muitos outros para quem o seu convívio era uma fonte vital. Como
viver com o universo desfalcado da sua presença? O que foi perdido/ficou eternamente/sobre o coração como a sombra de
outra pessoa.
*
Tínhamos ficado de nos
encontrarmos para uma cavaqueira interminável, quando eu entrasse de férias. Já
não o fazíamos havia algum tempo. No dia 3 de Agosto, telefonei-lhe a dizer que
já estava livre. Disse-me que se sentia mal e que deixasse passar mais uns dias
até melhorar.
Na semana seguinte,
entrou no hospital. E foram dois meses a deambular de cá para lá e de lá para cá,
dois meses atravessados por um verão incomum. Houve manhãs claras e outras
nevoentas, dias com sol e outros com chuva, e dias assim-assim. Dois meses num
vaivém entre o sol e a sombra, entre caminhos que se rasgavam e outros que se
complicavam e obstruíam. Acabou por vencer a sombra. A última vez que o vi,
ainda não há muitos dias, olhou-me fixamente com um olhar vazio (ou resignado?
ou de animal acossado?) e parecia querer dizer-me: “A nossa conversa fica
adiada para sempre”.
Porque é tudo para
sempre, mesmo a efémera morte,
encontrar-nos-emos
eternamente
e nunca mais nos
veremos.
O impossível volta a
ser impossível. Para sempre.
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Voyager
Um instante, um só
instante,
do azul ao vermelho, da
música ao fogo!
Por que não encontra o
sangue o seu lugar
entre os dispersos
mundos?
Perde o viajante
o caminho do regresso.
No cristal do coração
que nenhum sono embacia
fulgem imagens de
imagens
de frios sonhos
desfeitos.
Algum país voltado para
fora
lhe abrirá as vastas
portas
e ele repousará enfim