02 dezembro 2012

 

Camilo e o desconcerto do mundo


 

Atentem nesta página de Camilo.

Para além do prazer que é sempre ler o autor de A Queda de um Anjo, saborear a sua prosa vernácula, em livros que, por regra, não chegam às trezentas páginas, ao contrário do que hoje sucede, em que se escrevem desaforados e, muitas vezes, poluentes calhamaços de um milhar de páginas, quando o encurtamento do tempo requereria a contenção e a concisão camilianas, veja-se como Camilo define aqui o destrambelhamento do planeta.

Se há cento e cinquenta anos o escritor de S. Miguel de Ceide lamentava o desconcerto do relógio cósmico, que não diria ele do nosso tempo e dos «engenhosos destruidores das nossas alegrias»?

 

Estamos no dia 15 de maio de 1762.

Naquele tempo, os dias de maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía de sua casa às cinco horas de uma tarde cálida de maio, com um casaco de reserva no braço, para resistir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.

O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinalada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência e a ciência dos factos repetidos.

Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido um determinado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em julho.        

(Assim começa A Sereia, obra que foi publicada pela primeira vez em 1865).

 





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