03 março 2014
A propósito dos grandes e dos pequenos
Vejamos
o que diz o nosso P.de António Vieira,
sobre a forma como se comem os homens uns aos outros, discursando aos peixes,
depois de ter exposto a estes as suas próprias virtudes e os seus vícios, um
dos maiores dos quais é comerem-se eles uns aos outros:
«E
para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos
modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne
cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorant plebem meam,
ut cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam
e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à
qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? A
maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os
maiores, que comem os pequenos: Qui
devorant plebem meam, ut cibum panis.
»Nestas
palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas
cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o
seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem
meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos.E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que
os engolem e devoram: Qui devorant.
Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta
a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram
e engolem os povos inteiros: Qui devorant
plebem meum. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão.
»A
diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias
de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no
ano; porém, o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se
come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não
tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que
os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.»
(Sermão
de Santo António, Obras Escolhidas, Sá
da Costa, 2.º Vol).