25 março 2015
Herberto Helder
Herberto Helder.
Faleceu o criador de um fascinante universo poético. “Criador” no exacto sentido
de manipulador dos elementos primordiais para construir o cosmo, a partir do
caos inicial.
Quando o comecei a ler,
em Coimbra, era época de exames. Como não tinha tempo para ler obras extensas,
lia poesia. Fiquei logo assombrado com a leitura dos primeiros poemas, como
esse, inicial, de A Colher Na Boca:
Falemos
de casas, do sagaz exercício de um poder
tão
firme e silencioso como só houve
no
tempo mais antigo.
Estes
são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo
com ironia e doçura no fundo
de
um alto segredo que os restitui à lama.
De
doces mãos irreprimíveis.
-
Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as
casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a
boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
(…)
Como resistir a esta
envolvente sedução das palavras, rodeadas da sua treva? Lia, cada estrofe
impelindo à leitura das seguintes, num movimento imparável, poemas extensos,
pois Herberto Helder pertence a uma casta de poetas de grande espraiamento e
largo fôlego. Entramos no poema como num mar aberto, deixando-nos levar pela
força hercúlea das suas imagens, pela absoluta novidade das paisagens que nos
vai desdobrando.
Falemos
de casas (…)
Fiquei com esses
primeiros versos nos ouvidos, de tal forma que os declamava de cor em todos os
sítios.
Andava com Herberto Helder
por toda a parte. Levava-o na pasta aos cafés onde estudava, a comer comigo nos
balcões dos snacks-bares. Levava-o ao
médico debaixo do braço. O médico, um amigo da família, sempre curioso de ver o
que eu andava a ler, tirou-mo de debaixo do braço. Abriu à sorte e leu: mulher de pés no branco, transportadora/da
morte e da alegria. Voltou para mim o rosto atónito, as sobrancelhas
arqueadas de espanto por cima dos óculos, o bigode em agudezas de interrogação.
Também nunca mais
esqueci esses versos. Fazem parte de um poema célebre: O Amor Em Visita. Os últimos quatro versos da terceira estrofe,
onde aparece a mulher de pés no branco
são deste jeito:
-
Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as
mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher
de pés no branco, transportadora
da
morte e da alegria.
Foi assim que fui
penetrando no mundo de uma beleza feroz de Herberto Helder, lendo livro atrás
de livro: A Colher na Boca, A Máquina
Lírica, O Corpo O Luxo A Obra, Última Ciência, Os Selos, Do Mundo, entre outros, até aos mais
recentes A Faca Não Corta O Fogo,
Servidões. Não só poesia, mas também prosa, ou assim parecendo ser: Apresentação Do Rosto e, sobretudo Os Passos Em Volta, este, um livro de
contos, que li e reli um sem número de vezes, mas que normalmente não aparece
em antologias do género. Porquê não sei. Porque não são bem contos? E, no
entanto, são dos melhores que li em toda a minha vida. Se eu quisesse, enlouquecia – assim começa o primeiro conto,
intitulado Estilo. Penso que o livro tem
muito de autobiográfico. No segundo conto, Holanda,
faz-se exactamente alusão a um poeta: Um
poeta está sentado na Holanda. E, a dado passo: Um poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O
Inferno não o deixa. Num dos outros contos, Vida E Obra De Um Poeta, a narrativa termina assim:
O
poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim
a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e
falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício – a ferocidade dos
outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina
para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse
numa retrete de Paris – só, com a minha visão – o pressentido segredo das
coisas.