03 abril 2015
Manuel de Oliveira
Estávamos convencidos
que ele não morria, que era imortal como as imagens a que deu vida. Ele
próprio, questionado sobre a sua longevidade (pelo menos de uma das vezes que o
ouvi), parecia assumir um estado entre o perplexo e o culpado, ele, tão comum
aos outros homens, tão participante do destino deles e ignorando a razão por
que os deuses lhe concediam a graça de uma vida que se ia perenizando. Porquê
eu? Por que razão me acontece isto a mim?, manter-me activo a filmar com esta
idade?, interrogava-se para o jornalista que recolhia as suas palavras. “Sou um
homem tão comum como os outros.”
O certo é que o cineasta
mais velho do mundo, o portentoso criador de imagens que, tendo dobrado o Cabo
das Tormentas do centenário (um século de vida) não tinha descanso, andando
daqui para acolá numa realização febril de projectos, o génio que tinha sido o protagonista
de uma juventude prestigiosa, portador de uma compleição atlética, herói de
carros de corrida (dir-se-ia de “veículos alados”), o galã que fora de filmes
de outros, o artista português e do mundo que sacrificou a sua vida ao cinema,
ao ponto de sofrer prejuízos materiais e provavelmente danos morais, acabou
mesmo por se ausentar de nós. Na Páscoa, na Primavera, como se quisesse recordar-nos
simbolicamente o filme que o guindou a uma notoriedade para além das nossas
fronteiras – O Acto da Primavera –
onde se encena a paixão de Cristo, através de um auto popular que ele filmou
magistralmente.
O seu desaparecimento
deixa-nos um pouco mais órfãos do ponto de vista cultural, humano e artístico.
Assim, também nós nos vamos sentindo mais ausentes, perdendo sucessivamente as
figuras que nos são mais familiares e que foram constituindo os nossos pontos
de referência.
Ficam-nos as imagens
que nos deixou, essas, imperecíveis, e nas quais o Mestre, desconfiando
certamente da perenidade da graça que os deuses lhe iam concedendo, cedeu à
tentação de nelas inscrever a sua pessoa, aparecendo como figura secundária de alguns
dos seus últimos filmes. Num deles (Cristóvão
Colombo- O Enigma, se não me engano) aparece em diálogo com a sua mulher,
deixando-nos testamentariamente um pouco da sua vida de entrega à 7.ª Arte e do
papel que a sua mulher representou nessa entrega.