16 junho 2016

 

Das razões que nos assistem para mudarmos o nosso ideário


(Folheto de orientação política para os partidários da nossa causa)

Bem poderemos dizer com ufania que somos os campões da flexibilidade.

Quando tivemos o poder nas mãos, enchemos a boca com a palavra flexibilização. E não só apregoámos a ideia, como a pusemos em prática com muita largueza. Sobretudo no campo laboral fomos muito flexibizadores, rompendo com a armadura defensiva que as agremiações laborais forjaram ao longo de décadas, que nós chamamos de “irresponsabilidade”.

Para repormos equilíbrio na sociedade e procedermos ao necessário ajustamento (um termo que muito deve à nossa inventividade verbal) tivemos que nos socorrer dos nossos amigos troicanos e de ir buscar dinheiro onde ele tinha vindo a ser mal distribuído desde a Revolução dos Cravas. Foi assim que fomos flexibilizando aqui e acolá, ora encurtando os salários dos obreiros, ora os incríveis subsídios dos desempregados e as pensões dos reformados, ora os rendimentos das classes medianas e, com mais afinco, por viverem à custa do Estado, os vencimentos dos servidores públicos.

Desembaraçámo-nos de grande parte do sector económico estatal, vendendo a privados, com uma rapidez inultrapassável, empresas que podem dar muito lucro e que, por isso, se não concebem na esfera do Estado, por este não ter, enquanto patrão, a mesma  ávida flexibilidade que um privado.

Diminuímos os orçamentos da saúde, da escola pública, da ciência, das artes, em primeiro lugar, porque o Estado não é médico, nem professor, nem cientista e, muito menos, artista e, em segundo lugar para obrigarmos os sectores respectivos a serem mais flexíveis, por força de uma salutar ginástica eliminadora daquilo que designámos por “gorduras”. As gorduras, como se sabe, tolhem os movimentos capitais da sociedade, que só a iniciativa privada é capaz de impulsionar convenientemente.

Com esta nossa política começámos a desmoronar o chamado “Estado Social”, um monstro que foi engordado pelos fautores e adeptos da “Revolução dos Cravas”, cuja influência nós fomos abatendo com uma determinação nunca antes experimentada. Como seria de esperar, tivemos o ódio dos representantes ainda sobreviventes dessa revolução, que nos viraram as costas nos aniversários dela - aniversários que, apesar de tudo, ainda fomos celebrando, dentro do espírito flexível que nos caracteriza. E arrostámos corajosamente com grandes manifestações do poviléu, enchendo ruas e praças, incluindo as forças de policiamento. Mas mantivemo-nos firmes e serenos, porque o nosso lema é manter o barco a singrar, não obstante os mares encapelados. Firmeza no rumo e flexibilidade na adaptação às circunstâncias. Foi isso o que nos fez durar e chegar ao termo do mandato, apesar das grandes adversidades que tivemos que enfrentar.

Vieram as eleições e que aconteceu? Perdemos a maioria, mas o que é certo é que, isoladamente, as ganhámos com todo o mérito. Ora, quando se esperava que fôssemos mantidos no arco da governação com a ajuda dos partidários mais próximos de nós, estes burlaram-nos, visto que resolveram inesperadamente inflectir o seu rumo, unindo-se aos que comungam de ideários radicais (por isso, ditos “os comungas”), a pretexto de, em conjunto, representarem uma maioria que rejeitava a nossa política. Não nos conformámos e não nos conformaremos.

Esperamos que o novo governo, formado por uma aliança espúria, se desengonce e acabe por estatelar-se a todo o tamanho. Se o país escorregasse para o fundo, essa seria a nossa sorte e a nossa suprema felicidade, mas não podemos confiar indefinidamente nessa tábua de salvação. Também não nos podemos limitar a esperar que os nossos amigos troicanos armem a rasteira que têm em mente para fazerem tropeçar este governo e estender-se de rojo no chão.

Temos que agir em força, assumindo de vez a nossa faceta de oposição. E para isso temos que começar por atrair aquelas classes que atacámos no passado e defender ideias contrárias às que sustentámos quando no governo, pois são umas e outras que dão força à governação dos nossos adversários.

Ferimos de morte as classes medianas; pois temos agora que passar por defensores intransigentes dos seus interesses. Atraí-las para o nosso campo, atacando com gana o aumento de impostos com que as onerámos no passado recente, mas como o peso do fisco ainda perdura, não há senão que fazer de conta que são os nossos adversários os seus carrascos.

Haveremos de fustigar com todas as forças o aumento do desemprego, que tanto fizemos crescer no nosso tempo de governo, mas que nada impede, agora que estamos na oposição, de o criticarmos acerrimamente.

Não desperdiçaremos munição alguma no combate à austeridade, que tão acarinhada foi pelo nosso governo, mas que, atenazando ainda o nosso povo, pois já se sabe que nenhum governo a poderia erradicar de um momento para o outro, poderemos e deveremos fulminá-la como uma realidade existente no momento actual.

Enfim, teremos que saber erguer a bandeira do social. É a hora de metamorfosearmos o nosso ideário. Não há que ter pejo algum, pois isso só provará que sabemos mudar de pele consoante as circunstâncias de momento. Somos os campeões da flexibilidade e não há razão alguma para não mostrarmos flexibilidade nas ideias que defendemos.

Essa será a nossa grande batalha no presente. Pormos as cousas de pernas para o ar.

 Jonathan Swift (1685-1745)





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