26 março 2018

 

Os independentistas catalães na prisão

Finalmente estão presos praticamente todos os independentistas da Catalunha que tiveram responsabilidades no processo que culminou na declaração de independência no Parlement – uma declaração de independência um pouco equívoca na sua formulação, mas, apesar disso, não tolerada pelas autoridades centrais de Madrid, incluindo o Tribunal Constitucional.
O juiz Llarena tem feito bom e expedito trabalho, de parceria com o governo e o Tribunal Constitucional, seguindo agora na vanguarda do processo de retaliação, tendo sido muito pronto na formulação da acusação e na prisão dos culpados e dando mostras de grande contorcionismo na imputação do crime de rebelião e no forjamento do conceito de violência requerido por essa figura criminal.
Como as boas acções são assistidas pelas divindades propícias, Puigdemont acabou por ser detido na Alemanha, grande país europeu que – diz-se – tem dado colaboração sempre oportuna a Espanha. É nisso que as autoridades de Madrid confiam. Nesse salutar espírito de colaboração. Afinal de contas, como escreve o juiz Llarena com razoável imaginação no seu libelo, a acção dos independentistas presos é equiparável ao golpe de 23 de Fevereiro de 1981 – “o 23 F” -, em que o oficial Tejero, comandando um grupo de guardias civis, invadiu o Congresso e sequestrou os presentes.

Resta agora ver até onde vai a habilidade interpretativa dos germânicos.

12 março 2018

 

Não te armes antes de te armares

(ou as armas de que se deve munir a escola do futuro)
A solução do presidente dos Yankees de armar os professores, por causa do repetido morticínio nas escolas secundárias, é genial. Na verdade, se há alunos que entram armados nas escolas e matam, por que não podem os professores fazer o mesmo? Os professores têm o mesmo direito, se não um maior direito, a usar arma enquanto estão a debitar as suas aulas. Isso confere-lhes até o suplemento de autoridade de que necessitam para manterem os discípulos em respeito. Nos tempos que correm, as escolas são frequentadas por toda a sorte de alunos, de todas as proveniências sociais, culturais e étnicas, filhos de muitas mães e de muitos pais, e muitos desses alunos são atrevidos, rebeldes e indomáveis, não obedecendo à simples palavra do professor. Pois este, dispondo de arma, pode recorrer a um argumento definitivo, calando o aluno de vez.
O mesmo sucede quando o aluno é calaceiro e renitente a absorver os ensinamentos do professor. Este, antigamente, despejava a sua fúria marcando zeros enraivecidos numa caderneta, onde anotava as prestações dos alunos. Alguns, mais dados a vias de facto, tinham outros comportamentos de consequências mais imediatas. Tive um no colégio, para só mencionar um exemplo, que atirava com o molho de chaves à cabeça do aluno que falhava nas respostas às perguntas que lhe eram feitas sobre a matéria. O aluno estava no seu lugar e o professor, sentado à sua secretária, no alto do estrado. Daí, o professor lançava o seu modesto projéctil à cabeça do aluno. A solução actual do presidente dos Yankees é muito mais eficaz e definitiva, e com menos dispêndio de energia física: basta premir o gatilho de uma arma de fogo e disparar. Sempre é um progresso digno de um país avançado como os Estados Unidos da América.
Lembro-me também de certas segundas-feiras a seguir a domingos futebolísticos (nos tempos que correm, o futebol profanou-se, deixando de ser celebrado apenas no dia do Senhor para ocupar todos os dias da semana, mas naquele tempo era aos domingos). Oh, os circunspectos professores do colégio, se os seus clubes perdiam! Entravam de carantonhas cerradas, cabelos em desalinho, olheiras de quem perdeu a noite em agitação na cama. Na aula tornavam-se maus, ameaçadores, ferozes. Vociferavam, guinchavam, espancavam. Como lhes estaria facilitada a vida, se pudessem sacar de um revólver e eliminar a causa imediata do seu estado de exaltação! Muitos eram padres, que teriam adorado despachar para o Paraíso alguns daqueles imberbes moços, antes que as suas almas entrassem a pecar fortemente.
É certo que os alunos que estiverem armados também podem ripostar ou desencadear o tiroteio, como tem acontecido com aqueles que entram de surpresa e de caso pensado nas salas de aula para iniciarem um processo de morticínio. Mas, nesse caso, que belo efeito de batalha campal não poderá surgir de tal situação! Podemos imaginar o professor barricado atrás da sua secretária, disparando a sua arma simples ou o seu armamento complexo, e os alunos postados atrás das suas carteiras, premindo o gatilho das suas armas de tiro a tiro ou automáticas.
Não haverá, por certo, espectáculo mais excitante: as balas a esfuziarem, cruzando o espaço da sala de aula, o seu impacto violento nos alvos, o barulho matraqueado das armas, as paredes crivadas de buracos, o material destruído, enfim, os corpos rojando pelo chão, no meio de rios de sangue. Ao excitante da cena haverá de acrescentar-se o real da situação como um elemento de grande e vero dramatismo. Um autêntico reality show, que poderá ser avidamente fixado no seu real movimento por um qualquer desses astutos moços, recorrendo a um dos modernos maquinismos de bolso que permitem gravar cenas e eventos da realidade, para gáudio posterior de multidões de espectadores famintos de coisas autenticamente violentas. Um momento lúdico muito superior a jogos virtuais que têm a violência como elemento de refinado prazer. Eis o progresso da humanidade! Eis o futuro pedagógico das escolas, transformadas em laboratórios de exercícios bélicos com seus armeiros bem apetrechados, educando as novas gerações para a dureza da vida e os embates sérios que ela nos reserva, sem descurar o aspecto lúdico que existe na satisfação do nosso instinto de destruição e morte.
Por isso, daqui dirijo uma calorosa saudação ao muito lúcido e superior Presidente dos United States.


Jonathan Swift (1665-1745)




05 março 2018

 

Uma crónica de vez em quando

Coisas de nada ou talvez não
Reli o conto “Aparas” de Raymond Carver, incluído no volume de recolha de contos Telefona-me Se Precisares De Mim, da editorial Teorema. Curioso que nunca tinha descoberto um pormenor significativo e que para mim deveria ser muito relevante: o facto de o protagonista “Myers”, alcoolizado que acabou de sair de uma clínica de desintoxicação e deparou com a recusa da mulher em continuar a viver com ele (não lhe atendeu o telefone e não queria mais conversa com ele), tendo-se hospedado numa casa ao pé do mar, num quarto cujo anúncio de aluguer tinha vindo no jornal, tentou fazer qualquer coisa. Viu o dono da casa onde se hospedou, um tal Sol, a rachar lenha e quis imitá-lo, aprendendo com ele a cortar toros de madeira com o machado. Ao mesmo tempo, começou a escrever no seu bloco coisas que ia fazendo ou impressões que ia colhendo (uma espécie de diário, portanto).
Esta opção pela escrita é que não me deveria ter escapado numa narrativa onde ela aparece de forma insistente e talvez mesmo como metáfora, insinuada embora de um modo discreto, quase despercebido, como a própria urdidura dos contos de Carver, construídos a partir de pequenas notações, coisas na aparência insignificantes, resíduos ou aparas. Apara: “pequena parcela que se solta de uma coisa que se corta ou raspa”, diz o dicionário. Como possivelmente a escrita o será e a própria vida que serve de substrato àquela, tecidas ambas de ínfimas coisas sem relevo aparente. A escrita como meio de surpreender a vida no que tem de mais banal e recôndito, ou talvez a vida como escrita e a escrita como vida. Uma forma de renascer, reaprender a viver, descobrir (e descobrir-se), ordenar o mundo dentro de si, registar e fixar a transitiva beleza das coisas.
Bonnie, a mulher de Sol, também tinha o hábito de escrever. “A minha mulher quer ser escritora – disse Sol” ao recém-chegado hóspede. Depois de ter ficado sozinha e de ter trocado impressões com o marido sobre o novo hóspede, decidiu escrever sobre ele. «Bonnie decidiu que ia escrever acerca do homem no caderno que ia enchendo. Fechou os olhos e pensou o que ia escrever. O desconhecido alto, encurvado – mas belo! – de cabelo encaracolado e olhos tristes entrou em nossa casa numa noite fatídica de Agosto.»
O desconhecido entrou em nossa casa numa noite fatídica de Agosto». Que mistério encerraria esse desconhecido? A escrita poderia iluminar o mistério dessa personagem, que Bonnie registava ser alto, encurvado, ter cabelo encaracolado e olhos tristes?
Na véspera do dia em que decidira partir, Meyers esteve à janela do quarto a ouvir o rio. Depois decidiu tomar o seu caderno e escrever. Escreveu:
«A região onde me encontro é muito exótica. Faz-me lembrar um sítio sobre o qual tenha lido, mas para onde nunca tenha viajado. Para além da minha janela ouve-se um rio e no vale atrás da casa há uma floresta e precipícios, e cumes de montanha cobertos de neve. Hoje vi uma águia selvagem, e um veado, e cortei e rachei dois esteres de lenha.»
Na sua simplicidade, isto é muito belo e comovente. Tem um sentido primordial, e a escrita é a celebração dessa descoberta. Por isso, Meyers sente-se bem e reconciliado com o mundo à sua volta.
Escreve Carver a finalizar o conto:
«Depois pousou a caneta e ficou um momento com a cabeça entre as mãos. A seguir levantou-se, despiu-se e apagou a luz. Deixou a janela aberta quando foi para a cama. Estava bem assim.»

E eu fechei o livro, reclinei a cabeça no espaldar almofadado do cadeirão, cerrei os olhos a meditar nas potencialidades recriadoras da escrita e da inesgotável leitura dos textos, e assim fiquei por momentos. Estava bem assim.

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