21 maio 2018
António Arnaut
Foi
no dia 31 de Janeiro de 1969, vai quase para 50 anos (o que o tempo
corre!…) que eu me encontrei frente a António Arnaut, no Teatro
Avenida, em Coimbra, ele no palco e eu na plateia. Nessa conhecida
casa de espectáculos, onde também tinham lugar sessões cívicas,
celebrava-se o aniversário da revolta do Porto, ocasião para a
Oposição se manifestar e exprimir as suas ideias perante um público
mais ou menos restrito (a outra ocasião era o 5 de Outubro). Entrei
com o Ricard Salvat, o encenador catalão contratado pelo CITAC com
quem me cruzei na rua e que tinha manifestado interesse em assistir
ao acto, ele que também era de um país fascista.
Tinha
falado Orlando de Carvalho. Um discurso erudito, a explorar o
conceito de res publica, cheio
de cuidados para não afrontar directamente o regime, ali com
os seus camuflados vigilantes
espalhados pela plateia, como
de costume. Veio então António Arnaut, jovem nos seus trinta e
poucos anos, refulgente de vivacidade e verve. Discursou com calor,
com palavras destemidas e vibrantes
de “insurreição”
democrática. Arrebatou a assistência. Ricard Salvat foi nesse
momento um dos seus entusiastas aclamadores, como eu, como todos os
que enchiam o recinto.
Esse
ano de 1969 foi o ano da crise académica mais importante antes da
queda do regime. Salazar já havia caído da cadeira e o regime foi
virado de cangalhas seis anos depois. António Arnaut foi um dos
protagonistas mais salientes da nova era democrática. A ele coube o
papel fundamental da criação de
um dos pilares mais emblemáticos da nossa Constituição e do
Estado Social: o Serviço Nacional de Saúde. Este tem vindo a ser
torpedeado ao longo dos anos e de múltiplas e ardilosas maneiras.
António Arnaut foi sempre uma das vozes mais insistentes no protesto
e na denúncia desse e de outros entorses à democracia. Já no fim
dos seus dias, com a doença
a atenazá-lo, arranjou ainda
forças para, com João
Semedo, do Bloco de Esquerda, propor “uma nova Lei de Bases da
Saúde para defender a Democracia”, objecto de publicação pela
Porto Editora (Outubro de 2017).
Com
ele fora de combate, resta ver o que irão fazer desse pilar da
Constituição os que, na hora ainda quente da sua memória, o
brindam com o honroso nome de “Pai do Serviço Nacional de Saúde”.