27 maio 2018

 

O futebol e os media

Há muito que o futebol conquistou o espaço mediático em Portugal, a ponto de se ter tornado num dos assuntos mais relevantes do dia-a-dia da comunicação social (não digo toda, mas quase toda), ocupando noticiários e telejornais, transmissão e relato de jogos, entrevistas, comentários e sei lá mais o quê.
A relevância conferida a tal assunto não se mede só pelo espaço que lhe é concedido, mas também pelo destaque que se lhe dá na ordem de apresentação dos noticiários e telejornais. É frequente os telejornais abrirem com imagens do futebol e ocuparem um grande espaço do noticiário, antes de qualquer outra notícia relevante a nível nacional ou internacional. Também é frequente as televisões inserirem notícias do futebol a meio dos telejornais.
Isto significa que, a nível da comunicação social e, sobretudo dos meios audiovisuais, o futebol tem vindo a ganhar tanta relevância como qualquer outro facto noticiável de carácter social, político ou económico, de projecção nacional ou internacional. No plano axiológico, é a imposição de uma escala horizontal de “valores de notícia” (chamemos-lhe assim), em que tudo se equivale, podendo a notícia de um acontecimento do mundo do futebol aparecer ao lado de uma notícia de um tremor de terra que tenha devastado uma grande quantidade de pessoas, ou de um acontecimento bélico, ou ainda de um crime de grande impacto, etc.
Em determinadas situações, o futebol até pode ser catapultado, como vimos, para a cabeça dos noticiários e telejornais, ficando à frente de qualquer outro facto, mesmo que este tenha grande relevo social ou político. Tudo isto porque o futebol passou a estar, estruturalmente, ao mesmo nível que qualquer outro acontecimento noticiável, dependendo apenas a sua localização no noticiário de um determinado dia de razões conjunturais, ou então de razões que relevam do arbítrio de quem tem a direcção da informação. Aos fins-de-semana, então, as televisões ocupam uma grande parte do seu tempo com o futebol, tornando-se difícil, a determinadas horas, encontrar, entre a multidão de canais com que as empresas de telecomunicações nos aliciam para sermos seus clientes, um canal que esteja a transmitir uma programação diferente. O mesmo se passa com algumas emissoras (públicas) de rádio, que desarticulam o seu programa habitual de noticiários para darem primazia aos programas futebolísticos.
Não se trata de promoção do desporto, mas pura e simplesmente da promoção do futebol, visto que os outros acontecimentos desportivos não têm a mesma equivalência (e, aliás, o futebol pouco tem já de desportivismo, se é que tem alguma coisa ainda).
Nem no tempo da ditadura, em que se dizia que o futebol era uma das grandes fontes de “alienação” colectiva alimentadas pelo regime, ele alcançou uma tal obsessão mediática. É certo que o futebol adquiriu uma dimensão europeia e global que não tinha há décadas atrás e esse facto fez proliferar as competições e os jogos, acentuando o carácter popular e de massa do fenómeno futebolístico. Porém, os órgãos de comunicação social, em especial os meios audiovisuais com destaque para as televisões, têm contribuído para essa acentuação com o relevo que lhe têm dado em todas as vertentes, desde a transmissão dos jogos, mesmo de competições onde não entram equipas nacionais, até ao blá-blá televisivo e radiofónico, com os inevitáveis comentadores a disputarem protagonismo aos mais graves comentadores de temas económicos, sociais, políticos e culturais.
O futebol tem, pois, vindo a tornar-se no grande factor de “alienação” da nossa sociedade democrática. “Alienação” no sentido de que uma tal projecção do futebol, incentivada pelos “media”, conduz a uma inversão de valores e de prioridades, considerando-se o futebol como a verdadeira causa de promoção social e colectiva (veja-se o desempenho do futebol na questão da importância das cidades, vilas, aldeias, e a sua ligação perigosa à política autárquica), e conduz ou pode conduzir a uma exacerbação do irracionalismo clubista e, em certos casos, à consideração do futebol como uma entidade transcendente, ocupando o lugar do sagrado, como se fosse uma religião.


Nota: Fui elaborando este texto, mais apropriado para um artigo de jornal, em vários dias da semana que passou, incentivado pelos acontecimentos do Sporting e do final da taça, mas fi-lo sempre aos “bochechos”, no meio de múltiplas solicitações e saídas do local da minha residência. Entretanto, o constitucionalista Jorge Miranda e o articulista António Guerreiro publicaram excelentes artigos no Público (o Guerreiro, no suplemento “Ípsilon”) sobre o mesmo assunto. O meu tem preocupações similares, embora divirja na forma e no conteúdo (e na riqueza das ideias), sobretudo em relação ao segundo.








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