17 maio 2019
Elogio dos bons políticos
(onde se fala das virtudes que
exornam os políticos de gema)
A política é uma grande arte e um grande espectáculo. Uma das
artes maiores do nosso tempo e um espectáculo soberbo. Falo,
evidentemente, como um grande apreciador da coisa. Há quem não
morra de amores por esta particularidade da política e pretenda
obscurecê-la ou até mesmo extirpá-la dos nossos hábitos. São
cidadãos sorumbáticos, ascéticos, normalmente pertencentes a
grupos minoritários, sem nenhuma expressão na nossa vida colectiva. Não
percebo como há indivíduos que não suportam qualquer manifestação
de recreação ou de actividade lúdica.
Tivemos recentemente uma dessas grandes manifestações da arte de
fazer política. Por ela ficámos a conhecer uma qualidade que os
nossos melhores políticos ainda não tinham exibido, ou, pelo menos,
não tinham mostrado de uma forma tão brilhante. Refiro-me à arte
de transmudar um facto no seu contrário, fazendo-o passar de uma
qualidade para a sua oposta, por exemplo, de negativo para positivo,
como se o preto que toda a gente viu não fosse preto, mas branco, ou
o passo dado atrás, em recuo, fosse uma simples ilusão de óptica,
pois o que se verificou realmente (ou passou a verificar-se) foi a
manutenção da mesma posição, a da firmeza de uma rocha ou a da
inabalável coerência de atitudes. Tudo isto, não por intervenção
de qualquer poder mágico, ou de hipnose sobre quem viu ou assistiu à
ocorrência do facto, ou de alucinação colectiva, mas tão-só por
intermédio do poder da palavra que só os políticos de qualidade
conseguem atingir na máxima perfeição.
No princípio era o Verbo. Eis o poder original da palavra!
Eis como tudo se cria, tudo se inventa, tudo se transforma com a
palavra! Os verdadeiros políticos são criadores. Os melhores
criadores de mundos paralelos. Basta que desencadeiem o seu fabuloso
poder de domínio da retórica para fazerem com que um dia aziago se
transforme numa manhã ensolarada, a escassez se transfigure em
abundância, o desnorte se metamorfoseie em rectidão absoluta.
Há quem sustente que uma tal faceta se identifica com ilusionismo e
que o povo não é parvo nenhum para cair em esparrelas que tais.
Balelas!, direi eu, que sei do que falo. Na verdade, a ilusão faz
parte da vida e é uma qualidade intrínseca de todas as formas de
arte. Sendo a política uma arte, e uma arte nobre, direi mesmo
sublime, tem fatalmente a sua dose de ilusão. Não há mal nenhum
que seja assim. Só crassos positivistas o negarão. Quanto ao facto
de o povo não ser parvo, é evidente que não é, mas o povo, em boa
verdade, é uma entidade abstracta. No fundo, o que conta são as
pessoas concretas e as pessoas concretas são sensíveis ao que se
diz, ao discurso, à dialéctica, ao jogo das palavras. Veja-se como,
nos despiques eleitorais, se liga mais à forma como se desarma ou
entala o adversário, do que à substância das ideias. Os próprios
jornalistas e comentadores tecem os seus comentários como se
tivessem acabado de assistir a um round de boxe: ganhou A ou
B, dizem, porque A ou B bateram o adversário aos pontos. É com a
habilidade dialéctica que se põe o adversário KO, como se
costuma dizer, ou seja, a ver estrelas. E, no entanto,
tais profissionais do comentário e da informação não são
propriamente analfabetos. São especialistas do jogo político.
Muitas vezes os políticos chamam-se mentirosos uns aos outros, como
ainda recentemente aconteceu, mas são todos verdadeiros, porque, no
fundo, todos (quero dizer, os bons políticos) sabem mentir bem, e
mentir bem é os políticos sagazes saberem esconder os erros
próprios, os passos dados em falso, e agigantarem os erros e os
deslizes dos adversários, apresentarem-se a si próprios, sem
desfaçatez, como sublimes criaturas e os adversários como pulhas
incorrigíveis; é, em suma, dominarem a arte de convencer, posto que
com colorido e disfarce, para depois terminarem por vencer.
Este é o jogo político, um jogo com numerosos cultores e
apreciadores, e um espectáculo com os seus momentos de emoção e
transe, os seus dramatismos e tragédias, os seus arroubos e momentos
líricos.
Enfim, gosto.
Enfim, gosto.
Jonathan Swift (1667-1745)
08 maio 2019
Os descarados jogos partidários
A
semana que passou deu-nos uma imagem deprimente de certa maneira de
fazer política. Os partidos situados mais à direita no hemiciclo
parlamentar votaram favoravelmente a proposta de um deles – o CDS –
para recuperação de todo o tempo de serviço de congelamento da
carreira dos professores e que estes têm vindo insistentemente a
reclamar ao longo destes últimos dois anos do actual governo. Por
seu turno, os partidos mais à esquerda (PCP e BE) abstiveram-se e a
proposta foi aprovada, derrotando o PS.
Na
sequência disso, o governo veio apresentar a sua demissão, depois
de um conselho de ministros reunido de urgência durante algumas
horas e logo publicitado na comunicação social com o habitual
chorrilho de comentários, palpites e construção de diversos
cenários.
O
anúncio da demissão do governo caiu como uma bomba e lançou a
confusão. O governo não podia aceitar uma deliberação da
Assembleia que, contrariando a posição que sempre defendeu de não
acolher a pretensão dos professores de contagem de todo o tempo
congelado, implicava um aumento da despesa de oitocentos milhões de
euros por espaço de 7 anos, vinculando os governos futuros e
acarretando reivindicações idênticas por parte de diversos
sectores da administração pública. Tinha de ser o eleitorado a
decidir. Foi esse o pretexto para a demissão, sublinhado com ênfase
de escândalo.
Ora,
os partidos da direita deram uma grande mostra de irresponsabilidade
e de oportunismo, sobretudo se considerarmos que a deliberação se
situa nos antípodas da política e da doutrina do governo anterior,
formado exactamente por esses partidos, e que tal deliberação foi
tomada sem consideração alguma pelos gastos que poderia implicar
para o erário público, pelo princípio da igualdade em relação
aos restantes funcionários da administração pública e pela
consequência de amarração de futuros governos. O que os moveu foi
pura e simplesmente a caça ao voto, querendo captar a simpatia de
uma classe profissional pela qual não morrem de amores e que, em
princípio, seria mais próxima dos partidos da esquerda, incluindo o
próprio PS.
A
prova provada dessa irresponsabilidade e desse oportunismo está na
viragem espectacular que esses partidos passaram a adoptar, depois do
anúncio da demissão do governo e da sua bem sucedida mensagem.
Já
os partidos à esquerda do PS limitaram-se a deixar passar uma medida
que sempre defenderam. Nisso também tem razão o governo, que,
todavia, pretende com tal ressalva “passar a mão pelo lombo”
desses partidos que têm sustentado a governação e não criar uma
animosidade em relação a eles, que poderia ser fatal.
Diga-se,
todavia, que também da parte do governo há encenação e exagero,
pelo menos ao que nos é dado observar ou intuir. Ou seja, na
anunciada demissão também há uma parte de aproveitamento, de
dramatização forçada e de exploração das circunstâncias. Nem
tudo corresponderá a cem por cento de transparência e de
frontalidade. Os números que foram avançados e que corresponderão
aos gastos que seriam originados pela aprovação da medida deixam
dúvidas quanto à sua exactidão, dúvidas que ganham alguma
consistência com outros cálculos mais pormenorizados que têm sido
avançados. E, por outro lado, parece óbvio que se pretendeu apanhar
a maré tão inesperadamente criada pelos partidos à direita do
espectro partidário para atrair sectores do eleitorado e aumentar a
vantagem do PS, rumo a uma mais folgada margem de decisão e
autonomia.
Por
outras palavras, nem tudo será limpidez e lisura, mas também jogo,
truque e táctica, ou seja, os esquemas da velha política.
01 maio 2019
A luta de classes
Afinal,
a luta de classes existe mesmo. Se não perguntem aos donos do “Pingo
Doce”. De há anos a esta parte, resolveram assinalar o 1.º de
Maio, abrindo as portas dos supermercados do país com várias
ofertas de descontos e promoções especiais para atraírem uma
vastíssima clientela, recrutada fundamentalmente nas classes
trabalhadoras. Imagens de anos anteriores mostram-nos uma multidão
de consumidores a acotovelar-se à entrada para chegar primeiro às
mercadorias. Este ano o apelo repete-se. Nos telemóveis aparecem
mensagens anunciando as fantásticas promoções e descontos. As
mercadorias vendem-se com isenção de IVA e outras bonificações.
Enquanto
os sindicatos procuram atrair às manifestações do 1.º de Maio o
maior número de trabalhadores, os donos do Pingo Doce disputam-nos
às organizações que representam os interesses laborais, crentes de
que conseguirão dissolver as classes trabalhadoras na grande festa
do consumo.
O
Capital e o Trabalho frente a frente no 1.º de Maio.
A fronteira dos interesses
A
Lei de Bases da Saúde é mesmo a lei onde se espelham as opções
político-ideológicas fundamentais a respeito de um dos sectores
básicos da organização social e do posicionamento de interesses
conflituantes. Por isso
mesmo é que ela divide e traça uma fronteira entre os partidos,
pondo mais a nu a ideologia que eles defendem ou, se quisermos, os
interesses que eles prosseguem. Os
partidos mais à direita com a sua tendência para a defesa dos
interesses privados, ou seja, da mercantilização da saúde; os
partidos mais à esquerda, batendo-se pela valorização da esfera
pública, ou seja, pela acentuação do carácter público dos
serviços prestadores de
saúde, interligando-se num verdadeiro serviço nacional de saúde.
Com
isto se liga a questão da
imiscuição mais ou menos acentuada do negócio privado na esfera
pública da gestão e prestação dos serviços de saúde, que tanto
se tem discutido ultimamente. A questão de haver serviços de saúde
inteiramente privados ao lado do serviço nacional de saúde,
regendo-se pelas regras próprias do mercado, não está nem nunca
esteve em causa. O que releva para esta discussão é apenas a
referida questão de imiscuição dos serviços privados na esfera
pública, em regime mais ou menos encapotado de concorrência e
colisão, abastardando a
concretização
do
direito fundamental de todos os cidadãos a esse bem básico que é a
saúde.
O
PS parece
ultimamente pender para uma cedência às pressões que vêm de
sectores mais ligados à defesa dos interesses privados na questão
da saúde, pressões que vêm de fora e de dentro do partido e de
entidades institucionais, como o presidente da República. Isto
numa linha que parece de recuo às posições anteriormente
defendidas pelo seu secretário-geral e primeiro-ministro. Daí que
uma quantidade de personalidades da vida portuguesa se tenha alarmado
e manifestado publicamente as suas apreensões. É que esta é uma
questão que, como disse no início, define uma fronteira. Uma
fronteira em que o PS vai ser obrigado a dizer qual é exactamente o
lado em que se coloca e se segue ou não o legado do insigne
socialista que foi o criador do Serviço Nacional de Saúde.