09 julho 2019

 

Retomando um tema antigo






A questão da composição dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público é recorrente. Volta de tempos a tempos. Há vinte, vinte e poucos anos, debateu-se o assunto a propósito da alteração da Constituição que acabou com a obrigatoriedade de um dos dois membros designados pelo presidente da República ser um juiz, o que possibilitou a existência no Conselho Superior da Magistratura de uma maioria de membros não oriundos da judicatura.
Sempre me preocupei muito com a questão da legitimação democrática do poder judicial, o único poder do Estado que, na tradição europeia continental, não é legitimado pelo sufrágio popular, sendo, todavia, um poder de grandíssima incidência na vida e no património dos cidadãos. Por isso, sempre vi com bons olhos medidas que reforçassem a referida legitimação democrática. É que não é um curso de direito e uma formação específica numa escola de magistratura, aliadas a uma pressuposta seriedade de base, que conferem essa legitimidade. Deste modo, defendi acaloradamente a solução encontrada para os juízes e, de caminho, toquei também no Conselho Superior do Ministério Público. Na altura, eu era Procurador-Geral Adjunto. Ninguém me fez a mais pequena referência. E se fosse hoje? Fiquei espantado quando soube que a MEDEL, associação europeia de magistrados para a democracia e as liberdades, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria publicado, se tivesse encontrado uma editora.


O poder dos juízes
Nunca como agora a batalha dos juízes pelo que consideram ser o seu estatuto indeclinável adquiriu tanta ressonância pública. Tal não significa, porém, que esse extra­vasamento voluntário e tão enquis­tado, por força de uma reacção de grupo que vai quase ao ponto de pôr em crise as instituições, corres­ponda a um acolhimento favorável por parte dos cidadãos em geral e, muito menos, a posições solidárias fora do estrito âmbito profissional em que a luta tem sido travada. Pro­vavelmente, os efeitos serão exacta­mente ao contrário dos pretendidos, se é que se pensou neles de cabeça fria, e não obedecendo pura e sim­plesmente ao instinto de autodefesa.
O que motivou esta guerra (se re­corro a esta linguagem bélica é tra­duzindo a interpretação dos me­dia, que muito têm falado do "fogo dos juízes sobre a classe política") foi a alteração, em sede de revisão da Constituição, da norma da Lei Fun­damentai que versa a composição do Conselho Superior da Magistratura. Essa alteração veio a traduzir-se no quase imperceptível apagamento de duas ou três palavras: podendo o presidente da República designar ao Conselho dois vogais, um deles tinha que ser obrigatoriamente juiz. Ago­ra, não se diz nada sobre essa obriga­toriedade, pelo que os tais dois vo­gais são livremente designados pelo presidente da República, podendo ser dois membros estranhos à magistratura judicial.
O barulho que a dita alteração está a provocar tem uma significa­ção que é o verdadeiro pomo da dis­córdia: o Conselho pode vir a ser constituído por uma maioria (mais um) de membros não juízes. Se o presidente da República designar dois membros não juízes, a juntar aos sete eleitos pela Assembleia da República, serão nove não juízes para oito oriundos da judicatura.
Ora, os juízes, na sua maioria, en­quadrados pela sua associação sindi­cal, têm vindo a repudiar a falada alteração com o argumento de que está em causa a sua independência e o princípio da separação de pode­res, abrindo-se a via para o controlo político do poder judicial.
A meu ver, nada disto ocorre e, aliás, não serei o único magistrado a entender desse modo: veja-se, por exemplo, a opinião do Dr. Mário Belo Morgado, juiz de círculo do Tribunal de Vila Franca de Xira, em artigo muito contundente publicado no "Público" do passado dia 10 - «A "teoria do granizo" adaptada aos tribunais» - e a opinião do procura­dor-geral da República, em entre­vista dada ao mesmo jornal no pas­sado dia 16, apesar de se confessar solidário com a posição dos juízes.
Vejamos: a independência do po­der judicial vem a traduzir-se em os juízes decidirem livremente, obede­cendo apenas aos ditames da sua consciência e aos imperativos da lei, sem obediência a qualquer hierar­quia, mesmo de juízes, ressalvado o caso de recurso para tribunal superi­or e sem qualquer interferência, no­meadamente do poder político.
Ora, o Conselho Superior da Ma­gistratura é um órgão de gestão e disciplina, competindo-lhe, funda­mentalmente, nomear, transferir, exonerar, inspeccionar os magistra­dos judiciais e exercer a acção disci­plinar. A nomeação, transferência e exoneração dependem de critérios clara e precisamente estabelecidos na lei, podendo, em caso de viola­ção, o acto ser impugnado, inclusive por recurso para o Supremo Tribu­nal de Justiça: a inspecção, destinan­do-se a apurar a qualidade técnica e o nível de cumprimento da função pelo magistrado, é atribuída a juízes de grau superior, nomeados pelo Conselho em comissão de serviço, e só funciona em relação aos juízes co­locados na 1.ª instância, não obstante o Conselho, na sequência de re­clamações, poder mandar verificar o trabalho de juízes colocados nos tri­bunais superiores, o que releva mais da acção disciplinar do que do mérito do magistrado: quanto à acção disciplinar, ela só se exerce, obvia­mente, em relação a faltas disciplina­res cometidas pelos juízes e não no que toca ao exercício concreto da função de decidir. A independência desta permanece intangível.
Por outro lado, a maior parte das funções assinaladas é exercida pelo conselho permanente (restrito), asse­gurado sempre por uma maioria dos juízes, reservando-se para o plenário a decisão dos recursos hierárquicos interpostos das decisões daquele.
Acresce que os membros não juízes - os eleitos pela Assembleia da Re­pública e os indicados pelo presidente da República - não ficam vincula­dos ao órgão político que os elegeu ou nomeou, nem, muito menos, aos partidos políticos, agindo com um es­tatuto legalmente assegurado de in­dependência e não de comissários políticos. A isto se junta o facto de as individualidades indicadas pelo presi­dente da República não serem neces­sariamente políticos, mas, fundamen­talmente, cidadãos de reconhecido mérito. E, em última instância, a As­sembleia da República e o presidente da República são órgãos políticos de soberania, mas de uma natureza mui­to diferente do Executivo, quer pelas funções, quer pela base plural mais diversificada formada pelas maiorias que os elegeram.
Neste contexto complexo, onde se vislumbra, ainda que por arremedo, a subordinação do poder judicial ao po­der político? O que é que justifica a vi­são catastrofista de uma iminência de controlo político do poder judicial?
Punhamos os olhos no Tribunal Constitucional: os seus juízes são praticamente todos eleitos, por mai­oria qualificada, pela Assembleia da República. Diz-se, por vezes, que são juízes políticos, para os menori­zar. No entanto, é patente o grau de independência, de elevada qualifica­ção técnica e de seriedade com que, de modo geral, exercem a função. Cavaco Silva, quando primeiro-mi­nistro, não os poupou ao seu famoso qualificativo de “forças de blo­queio”. O carácter ideológico que, por vezes, se manifesta nas suas de­cisões acontece em certos casos mais extremados, em que é patente a divisão em blocos. Mas o Tribunal Constitucional é um tribunal com uma jurisdição de vertente predomi­nantemente política e, de qualquer modo, nada de semelhante se passa com os chamados tribunais comuns.
A separação de poderes, que tam­bém se aponta como estando em ris­co com a referida alteração constitu­cional, não tem ponta por onde se lhe pegue. O cerne do poder judicial, como se viu, não é minimamente be­liscado na sua independência relati­vamente aos outros poderes com a referida alteração constitucional, que, como referiu Miguel de Sousa Tavares, é mais simbólica do que real e, provavelmente, para não ser exercida nunca. Mas, já agora, vem a propósito perguntar por que é que a separação de poderes deve ser tão exacerbadamente defendida, quando se trata de pretensas imiscuições no poder judicial e não se observa o mesmo princípio relativamente a in­tromissões dos juízes no poder legislativo; como tantas vezes acontece, a propó­sito de leis cujo figurino não compete aos magistrados traçar.
Vejamos o autogoverno. O autogoverno das magistraturas pode ser en­tendido (nem todos os autores assim o entendem) como condição para se garantir a independência do poder judicial. Mas será que o autogoverno significa uma autogestão completa, uma supremacia de magistrados so­bre membros não magistrados, sobre­tudo nas matérias atrás referidas e com o estatuto que é assinalado a to­dos os membros do Conselho?
O prof. Figueiredo Dias, que não é suspeito de atraiçoar o espírito de in­dependência que deve nortear o po­der judicial, há dois anos (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.ºs 3849,3850 e 3851), defendeu sem re­buço que os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público nem membros eleitos corporativa­mente deviam ter. Fossem eles ma­gistrados ou não magistrados, deveri­am ser eleitos por maioria qualificada pela Assembleia da República, tal como sucede em Espanha, e, mesmo assim, os magistrados em posição de minoria. Ora, se se fosse para uma solução dessas, a independência dos tribunais iria por água abaixo?
Por tudo isto, entendo que a reac­ção a que temos vindo a assistir é desproporcionada e injustificável. Mesmo com o pretexto suplementar do discurso do dr. Almeida Santos, cujas palavras não me parecem as­sim desassisadas, nem proferidas fora de um direito de crítica, nem desgarradas de um certo sentimento dominante em determinados meios.
Ora, isto não ajuda a luta dos juízes, que, de resto, não pode aspirar a mais do que à negociação, na impossibili­dade de fazer uma nova e extraordi­nária revisão constitucional. Como, também, o seu discurso, por vezes de pendor maniqueísta e redutor, não encontrando eco favorável na opini­ão pública, divorciada dos aconteci­mentos ou dominantemente hostil em certas camadas cultas (basta ler a imprensa e a autêntica onda de arti­gos que o caso fez surgir), só pode conduzir ao isolamento um tanto sui­cida. Mas o crescente interesse dos media pela temática em causa e, sobretudo, o alargamento de toma­das de posição no campo opinativo, alargamento esse também propiciado pela mediática auto-exposição dos magistrados, significa inevitavelmen­te que algo está a mudar, mas não no sentido dominante e fechado que aqueles veiculam.

(JN de 20/11/97)
des, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria publicado, se tivesse encontrado uma editora.








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