21 abril 2013

 

Resposta a um concidadão que me interpela


Onde se demonstra que é necessário olhar à realidade circundante para se não confundir cirurgia social com batalha campal

 

Meu Prezado Senhor:

Recebi a sua carta indignada, acusando o governo da Nação de parecer apostado em destruir o país. Escreve VM: Os membros do governo parecem ter ocupado os seus postos como se fossem atiradores colocados em lugares estratégicos para irem abatendo fábricas, casas de comércio, restaurantes, botequins, centros de diversão, instituições culturais, casas de recolhimento de idosos, creches, postos de trabalho e, escândalo dos escândalos, afugentando a juventude para países mais acolhedores. Dia a dia, são menos lojas, mais portas fechadas, mais fábricas encerradas, mais trabalhadores no desemprego, mais jovens a emigrarem, transformando as nossas  cidades em centros desoladores e desertificados.   

Quão bélica linguagem se destila no seu acrimonioso escrito! O que para aí vai de espingardeio fantasioso! V.M. desculpar-me-á, mas parece ter sido apanhado por esse vírus malfazejo que se alojou no cérebro de muitos dos nossos compatriotas, distorcendo-lhes a escorreita percepção das cousas. Pasmo de visão tão apocalíptica. V.M. compartilha do tom lamuriento daquelas massas ignaras que andam pelas ruas aos berros, erguendo punhos rancorosos para o ar, e dá mostras, como elas, de não entender nada da política patriótica que um punhado de concidadãos corajosos, sustentados pela maioria (repito: pela maioria) tem vindo a levar a cabo estoicamente, arrostando com toda a sorte de dificuldades, incompreensões, insultos e canalhices, e mesmo assim persistindo, contra ventos e marés, em permanecer firme nos seus postos.

Mesmo depois da sentença adversa do Tribunal da Magna Carta, veja V. M. como eles resistem com brio, enfrentando mais essa força de bloqueio. Tal não seria assim, se eles não estivessem plenamente convictos da sua acção restauradora das virtudes da Pátria, ou, se preferir, do plano de retrocesso progressivo que todos deveríamos acarinhar.

Como V.M. muito bem sabe, o nosso país entrou num terreno declivoso de maus vícios. As classes laboriosas conquistaram direitos inconcebíveis: horários de trabalho tabelados, fins-de-semana que vão do fim da tarde de sexta a domingo, vencimentos fixados por acordos colectivos, horas extraordinárias pagas a dobrar, férias pagas e ainda com direito a subsídio, mais um subsídio por ocasião do Natal a acrescer ao respectivo vencimento, subsídios por doença, subsídios por desemprego, subsídios por maternidade, diminuição da idade da reforma etc., etc, etc.

No que respeita aos servidores do Estado, nem se fala: todos esses direitos, talvez até reforçados, e ainda mais alguns. O funcionalismo vive repimpado nas suas escandalosas regalias.

Acrescente V. M. a isto um sistema de ensino público e um sistema de saúde «tendencialmente gratuitos», isto é, à custa do erário público, ou seja, dos nossos impostos. Tudo muito bonito, como reza a Magna Carta, que é uma espécie de vaca sagrada em que se não pode tocar.

Ora, nada disto podia dar bom resultado. Entrou-se numa sociedade de lazer, de ócio, de consumismo desenfreado por parte das grandes massas da população, enquanto o Estado e as famílias se iam atolando em dívidas. Por isso, os povos mais contidos e produtivos que nos têm permitido viver, generosamente, com os seus empréstimos, começaram a dizer, para nossa vergonha, que estávamos a viver acima das nossas possibilidades. Havia que pôr cobro a uma tal situação.

As classes laboriosas existem para laborar; as classes médias, para viverem na mediania. Não é todos viverem à tripa-forra, como se todos tivessem iguais direitos ao mesmo tratamento e privilégios.

Coube a este punhado de patriotas, alçado ao poder com o voto da maioria da população aplicar o remédio amargo que se impunha para vencer uma tal situação doentia, encetando a revolução original do empobrecimento generalizado. Restaurar as virtudes perdidas dos nossos antepassados foi o seu lema desde o início, retirando às classes laboriosas os direitos abusivamente conquistados e recolocando as classes médias na mediania de onde nunca deviam ter saído.

É claro que é naturalmente sobre elas que tem de recair o principal ónus do sacrifício e não me admiro nada que muitos dos que catapultaram estes patriotas ao poder se  queixem, lamuriem e protestem, mas pergunto: o doente que estivesse prisoneiro de grave doença consentiria na cura, se de antemão soubesse os dolorosos tratamentos a que iria ser submetido?

Pois este nosso governo, que muito nobremente, em funções, decidiu vestir uma bata de trabalho com as cores da nossa bandeira, é o cirurgião aplicado que vai extrair o câncer que ulcera o nosso país com uma cirurgia dolorosa, determinada e contumaz. Ir até à raiz do mal, isto é, até ao passado onde ele teve origem, eis o busílis da questão. Recuar cinquenta ou sessenta anos em tratamento retroviral, como agora se diz, não é nada fácil. Implica que muita coisa se perca, muito sangue novo se verta e muito sonho se desfaça. Mas é preciso andar para trás, para depois ir para a frente do ao para trás, percebeu?

Muitos resistirão; outros têm de sucumbir, pois essa é a lei da vida, a verdadeira Lei das leis.

Não confunda, porém, V. M. cirurgia social com batalha campal.

 

Queira V. M. dispor, sempre que queira, deste seu criado

 

Jonathan Swift (1665-1745)





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