29 janeiro 2006

 

As últimas eleições presidenciais

Das eleições do passado Domingo, retiro pessoalmente estas conclusões:
1 - A necessidade sentida, muitas vezes de modo difuso, pelo eleitorado (inclusive de esquerda) de criar um contrapeso à dominância de um partido que obteve uma maioria absoluta e cujos perigos de descambar para o autoritarismo se têm feito sentir em diversos sectores. Cavaco apareceu como o homem capaz de estabelecer esse equilíbrio, para além do seu perfil de homem austero, sério, rigoroso, exemplarmente cultivado durante a campanha, em que contrastou de quase todos os outros candidatos, que fizeram uma campanha pela negativa e frequentemente agressiva. Soares, nisso, ultrapassou todas as marcas, perdendo o seu autoproclamado “fair play”. Acresce o perfil técnico do candidato, a sobrelevar em termos de importância as questões ideológicas, num tempo em que os problemas a resolver são de ordem tão imperativamente material e imediata, que não parecem ter coloração ideológica. Assim é que, confrontado com a designada «política de direita» do governo no próprio dia das eleições, o ministro Correia de Campos respondeu que a política do governo não era de direita nem de esquerda, mas nacional.
2 - O fim de um ciclo político na vida portuguesa, ainda muito marcado por uma geração que vinha das profundidades espessas da ditadura, que transportava consigo a memória das lutas antifascistas, dos terríveis anos da Segunda Guerra Mundial, das experiências do MUD e das querelas entre o socialismo real e o socialismo democrático e que se impôs a seguir ao «25 de Abril» através de um árduo combate, quase degenerando numa guerra civil, com o triunfo e a institucionalização daquele modelo de democracia que, se meteu o socialismo «na gaveta», veio a revelar-se historicamente como inafastável nos seus fundamentos e princípios estruturantes. Soares era (e é) a encarnação dessa memória e desse combate vitorioso que os textos recentemente publicados por Eduardo Lourenço evocam com um misto de nostalgia e de exaltação heróica, porventura deixando transparecer essa ideia de fim de um ciclo. Sendo simultaneamente protagonista e símbolo desses tempos, Soares sempre se apresentou em público com os direitos que esse estatuto reclamava, como se lhe bastasse fazer um sinal para toda a gente se render à majestade do gesto e curvar-se perante a carga simbólica que ele transportava e o património vivo que ele era e é ainda.
Porém, desta vez, nenhuma vaga de fundo correspondeu à majestade do gesto, assim como não lhe valeram outros brasões, como o de ser ele o homem da cultura que se contrapunha ao homem da economia, desamparado este de todos os valores culturais. Mas esse homem tinha, por sinal, como mandatário nacional, uma das figuras mais relevantes da ciência médica e dessa mesma cultura que Soares queria reclamar para si em exclusivo. E Alegre, vindo também da ditadura e da resistência antifascista, mas pertencente a outra geração, mais próxima das crises académicas dos anos 60, poeta, com a musicalidade da sua poesia de resistência a vibrar ainda na memória afectiva de muitos dos que engrossaram as fileiras da sua rebeldia, palmou-lhe uma grossa fatia dos artistas e intelectuais que ele gostaria de ter, como noutros tempos, a seu lado. Habituado a ser rei (embora republicano, socialista e laico), o reino fugiu-lhe, inclusive o do partido de que foi o pai fundador, e com isso, a rebeldia manifestada não foi só a de Alegre, mas a de muitos militantes e simpatizantes desse partido e, de um modo geral, do eleitorado de Esquerda. A realidade mudou.
3 - O começo do declínio do monopólio dos partidos no exercício da actividade política, ao menos no que diz respeito à eleição do presidente da República, cuja matriz constitucional não assenta nos partidos, mas de que estes nunca abriram mão. Um dos erros crassos de Soares foi ter pensado que os aparelhos partidários eram indispensáveis, quer para o lançamento do candidato, quer para o êxito da candidatura, menosprezando sobranceiramente a candidatura de Alegre exactamente por não ter apoio partidário e colando-se excessivamente ao directório do PS. O resultado viu-se. Não só Alegre o bateu por largos pontos, como Cavaco, distanciando-se prudentemente dos partidos, se alçou ao primeiro lugar. Até nisso se manifestou o desejo do eleitorado de ver na presidência alguém que representasse ou pelo menos aparentasse uma atitude de equidistância e de equilíbrio em relação ao excessivo poder que os partidos, também eles tomados de descrédito e em crise, têm na vida política portuguesa.





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