20 janeiro 2006
Laicidade e Crucifixos
Tenho o prazer de publicar um texto que o meu amigo Pedro Vaz Patto simpaticamente me enviou e que vai enriquecer um debate que no Sine Die tem sido «produtivo», desde a altura em que o Eduardo Maia Costa o lançou (crucifixos) e o João Paulo o retomou em três postais com compromisso de continuação (1, 2 e 3):
O Estado deve ser laico, mas não o são a sociedade e a cultura. A laicidade do Estado traduz-se em neutralidade para com as religiões, não em indiferença ou hostilidade para com elas.
Aceito a linha de princípio indicada por Vital Moreira quando distingue entre espaço público (a sociedade e a cultura), onde as religiões não podem deixar de estar presentes, e o espaço estadual. Mas entre Estado e sociedade os espaços de interpenetração não podem deixar de existir. Um Estado insere-se numa sociedade e numa cultura determinadas e, tanto mais se for um Estado democrático, deve estar aberto a elas, não as pode ignorar ou menosprezar. Por isso, é natural que dignitários eclesiásticos, como representantes de uma instituição de relevo na sociedade civil, possam estar presentes em cerimónias oficiais. Ou que o Presidente da República possa estar presente em cerimónias religiosas particularmente significativas para largos extractos da população (não menos significativas do que são jogos de futebol onde participam clubes de que nem todos os portugueses são adeptos, e onde ninguém questiona que ele possa estar presente).
Esta interpenetração entre Estado e sociedade é particularmente evidente no que à escola se refere. A escola estadual é, mais do que estadual, escola pública. Não pode ignorar a cultura onde se insere, sob pena de se negar a si própria. Nada há de abusivo, por exemplo, em que nela se festeje o Natal respeitando o seu sentido mais autêntico (questão que também vem sendo discutida em tribunais norte-americanos), sem o desvirtuar reduzindo-o a uma bizarra “festa de Inverno” (isso sim , seria culturalmente agressivo e anti-democrático).
É a esta luz que vejo a questão da eventual presença de crucifixos em escolas públicas. Essa presença não pode ser imposta, mas também não vejo que deva ser proibida quando assim o reclama a comunidade escolar sem que alguém com isso se sinta discriminado. Foi a uma solução similar que se chegou na Baviera (onde a tradição é, como em Itália, neste aspecto, mais forte do que a nossa), depois de sobre a questão se ter pronunciado o Tribunal Constitucional Federal. Também em Itália se tem entendido que o crucifixo é um símbolo de identidade cultural, não incompatível com a laicidade do Estado. Este princípio sempre foi pacificamente aceite em regime democrático e pluralista, mesmo nas regiões onde mais se sentia a influência histórica do Partido Comunista. Só deixou de o ser por iniciativa de um recém-convertido ao islamismo que não tem tido qualquer apoio entre as associações muçulmanas mais representativas.
Quanto ao alcance do crucifixo como símbolo cultural, direi que muito lamentaria se o mesmo servisse de instrumento de divisão ou “arma de arremesso”. Com esse símbolo podem identificar-se muitos não crentes sensíveis às lutas pela justiça, pelos direitos humanos e pela solidariedade com os mais pobres. Na verdade, no crucifixo vemos a imagem de um Deus que se solidariza com as vítimas da injustiça e da opressão e com o sofrimento humano mais atroz. Devido a esta exaltação dos humildes, também Benedetto Croce via na revolução cristã a raiz de todas as revoluções posteriores em favor da dignidade humana (que sem aquela não se compreendem). Porquê retirar um símbolo tão rico de significado das paredes, como se algo de indecoroso se tratasse?
Pedro Vaz Patto
A polémica em torno da presença de crucifixos em escolas públicas tem-me feito recordar o quadro sob o qual exerci funções de juiz no início da minha carreira, na sala de audiências do Tribunal da Comarca de Gouveia. Espero que esta referência não sirva de denúncia para suscitar a intervenção “saneadora” de alguns mais zelosos guardiões da laicidade (situações semelhantes têm sido discutidas em tribunais norte-americanos). Representa tal quadro Moisés e as Tábuas da Lei. Sempre me pareceu adequada tal representação numa sala de audiências, não menos do que a representação de figuras da mitologia grega. Não está o Decálogo bem presente na cultura em que, crentes e não crentes, estamos imersos (non possiamo non dirci cristiani- é celebre a afirmação do filósofo agnóstico Benedetto Croce) e que serve de substracto ao nosso ordenamento jurídico, o penal em particular?. O “Não matarás” das Tábuas da Lei nada terá a ver, no plano histórico e cultural, com a punição do homicídio nas nossas sociedades?
O Estado deve ser laico, mas não o são a sociedade e a cultura. A laicidade do Estado traduz-se em neutralidade para com as religiões, não em indiferença ou hostilidade para com elas.
Aceito a linha de princípio indicada por Vital Moreira quando distingue entre espaço público (a sociedade e a cultura), onde as religiões não podem deixar de estar presentes, e o espaço estadual. Mas entre Estado e sociedade os espaços de interpenetração não podem deixar de existir. Um Estado insere-se numa sociedade e numa cultura determinadas e, tanto mais se for um Estado democrático, deve estar aberto a elas, não as pode ignorar ou menosprezar. Por isso, é natural que dignitários eclesiásticos, como representantes de uma instituição de relevo na sociedade civil, possam estar presentes em cerimónias oficiais. Ou que o Presidente da República possa estar presente em cerimónias religiosas particularmente significativas para largos extractos da população (não menos significativas do que são jogos de futebol onde participam clubes de que nem todos os portugueses são adeptos, e onde ninguém questiona que ele possa estar presente).
Esta interpenetração entre Estado e sociedade é particularmente evidente no que à escola se refere. A escola estadual é, mais do que estadual, escola pública. Não pode ignorar a cultura onde se insere, sob pena de se negar a si própria. Nada há de abusivo, por exemplo, em que nela se festeje o Natal respeitando o seu sentido mais autêntico (questão que também vem sendo discutida em tribunais norte-americanos), sem o desvirtuar reduzindo-o a uma bizarra “festa de Inverno” (isso sim , seria culturalmente agressivo e anti-democrático).
É a esta luz que vejo a questão da eventual presença de crucifixos em escolas públicas. Essa presença não pode ser imposta, mas também não vejo que deva ser proibida quando assim o reclama a comunidade escolar sem que alguém com isso se sinta discriminado. Foi a uma solução similar que se chegou na Baviera (onde a tradição é, como em Itália, neste aspecto, mais forte do que a nossa), depois de sobre a questão se ter pronunciado o Tribunal Constitucional Federal. Também em Itália se tem entendido que o crucifixo é um símbolo de identidade cultural, não incompatível com a laicidade do Estado. Este princípio sempre foi pacificamente aceite em regime democrático e pluralista, mesmo nas regiões onde mais se sentia a influência histórica do Partido Comunista. Só deixou de o ser por iniciativa de um recém-convertido ao islamismo que não tem tido qualquer apoio entre as associações muçulmanas mais representativas.
Quanto ao alcance do crucifixo como símbolo cultural, direi que muito lamentaria se o mesmo servisse de instrumento de divisão ou “arma de arremesso”. Com esse símbolo podem identificar-se muitos não crentes sensíveis às lutas pela justiça, pelos direitos humanos e pela solidariedade com os mais pobres. Na verdade, no crucifixo vemos a imagem de um Deus que se solidariza com as vítimas da injustiça e da opressão e com o sofrimento humano mais atroz. Devido a esta exaltação dos humildes, também Benedetto Croce via na revolução cristã a raiz de todas as revoluções posteriores em favor da dignidade humana (que sem aquela não se compreendem). Porquê retirar um símbolo tão rico de significado das paredes, como se algo de indecoroso se tratasse?
Pedro Vaz Patto