24 janeiro 2006

 

Legalizar a prostituição?

O Pedro Vaz Patto volta a participar na discussão de um tema que já foi aqui tratado, com o envio de um texto que tenho o maior gosto em publicar:

A questão da legalização da prostituição está «em cima da mesa». Sem querer, de modo algum, pôr em causa a boa fé de quem pensa o contrário, a primeira observação que me ocorre é que uma proposta como esta nada tem de “progressista”. A prostituição é uma prática velha como o mundo. A sua legalização não representa qualquer progresso, mas antes a capitulação conformista diante de uma realidade que se tem por inevitável, como se fosse uma fatalidade classificar as pessoas (e as mulheres em particular) como de primeira e segunda categoria quanto à tutela da sua dignidade. Quando se fala na prostituição como algo de inevitável ou um “mal necessário”, pensa-se sempre nas filhas dos outros, que serão as filhas dos outros, e não as nossas, a fornecer a “matéria-prima” de uma actividade “empresarial” que se pretende equiparar a qualquer outra. Parece que se desistiu, definitivamente, de mudar o mundo…
Diz-se que a legalização da prostituição é a melhor forma de combater a prostituição forçada, a prostituição infantil e a violência exercida sobre quem exerce tal actividade, e também de tutelar a saúde e os direitos dessas pessoas (menos merecedoras de atenção são as razões de quem invoca, a este propósito, os interesses fiscais do Estado).
Opinião completamente diferente têm associações que trabalham “no terreno” e se dedicam ao apoio e reinserção social das vítimas da prostituição, como, por exemplo, a associação internacional Coalition Against Trafficking in Women (
www.catwinternational.org), as associações italianas IROKO, presidida pela investigadora nigeriana Esohe Aghatise, e Comunidade João XXIII, presidida pelo Pe. Oreste Benzi (www.apg23.org) e a associação portuguesa “O Ninho” (ver a entrevista da sua presidente, Inês Fontinha, no Público de 10 de Janeiro de 2006).
Em alternativa a essa opção, essas e outras associações aplaudem a política do Governo sueco, que se baseia em pressupostos radicalmente diferentes. Para este, a prostituição é sempre uma forma de violência sobre as mulheres e não é uma fatalidade. Desde 1999, a legislação sueca pune quem explora a actividade de prostituição de outrem e (o que é inovador) também o cliente, ao mesmo tempo que prevê formas de incentivo à reinserção social das pessoas que se prostituem, estas descriminalizadas e encaradas como vítimas. De acordo com o balanço efectuado pela ministra responsável pelo sector (ver
www.prostitutionresearch.com), nos primeiros três anos posteriores à entrada em vigor da lei, o número de mulheres que se dedicam à prostituição reduziu-se em mais de um terço e a procura dessa actividade reduziu-se em cerca de três quartos. Em comparação, a actividade cresceu nos outros países escandinavos, que seguem políticas diferentes. As investigações policiais revelam que os traficantes, porque vêm diminuídos os seus lucros em resultado da diminuição da procura, preferem ter outros países como destino. A lei recolhe o apoio da maioria (cerca de oitenta por cento) da população e, em particular, de associações de apoio às mulheres vítimas da prostituição e de mulheres que abandonaram a prostituição.
Esta experiência revela que não há apenas a alternativa entre a prostituição clandestina e a legal. Não são apenas estas (não podem ser) as alternativas que o Estado deve oferecer às vítimas da prostituição.
Há razões lógicas, confirmadas por estudos (ver
www.prostitutionresearch.com e www.catwinternational.org), que demonstram que a legalização da prostituição não é um caminho para resolver nenhum dos problemas normalmente invocados para a justificar.
Não é uma forma de combater ou limitar a prostituição forçada. É óbvio que esta se combate mais facilmente quando qualquer forma de exploração da prostituição é perseguida criminalmente do que quando, a coberto de uma pretensa mas frequentemente simulada (o que se compreende num contexto de grande carência socio-económica) voluntariedade, dessa perseguição podem ser excluídas algumas formas dessa exploração. A legalização, como é óbvio, dá aos “empresários” que exploram pessoas nessa situação de carência (e que são a grande maioria) uma outra segurança e protecção. E nessas situações de carência não é de esperar que sejam as mulheres a denunciar as pressões de que são vítimas ou a desmascarar a pretensa voluntariedade. Também esta pretensa (e frequentemente simulada) voluntariedade pode levar a que as instituições oficiais considerem desnecessária a protecção dessas mulheres. Nos países onde a prostituição foi legalizada, a esmagadora maioria das mulheres que se prostituem continua a ser proveniente dos países pobres do Terceiro Mundo ou da Europa de Leste, que facilmente poderão ser consideradas vítimas do tráfico.
Com a legalização, a prostituição aumenta significativamente. Na Holanda, os rendimentos respectivos correspondem a cinco por cento do rendimento nacional. Esse aumento também se dá na prostituição clandestina. Uma das razões para tal tem a ver com a vontade de evitar o controlo e a perda do anonimato que a legalização acarreta (as mulheres prostitutas não querem perder o anonimato, porque esperam poder um dia mudar de vida, sem que permaneçam quaisquer vestígios do seu passado).
Como também tem sido demonstrado por vários estudos, a violência física e psicológica é algo de intrínseco à prostituição, seja ela legal ou clandestina.
Os perigos para a saúde pública (em particular, no que se refere à difusão da sida) que decorrem da prática da prostituição só desaparecem verdadeiramente quando se abandona a sua prática, não quando esta é legalizada ou promovida. Os controlos sanitários que se efectuam quando a prostituição é legalizada incidem sobre a mulher que se prostitui, não sobre o cliente, visam mais a protecção deste do que a daquela, visam impedir o contágio deste por aquela, e não o contrário. Por outro lado, as pressões do “mercado” (legal ou ilegal) levam muitas vezes a mulher a aceitar a prática de relações sexuais sem o uso do preservativo (que, de qualquer modo, nunca é eficaz a cem por cento) a troco de uma maior remuneração, ou sob a ameaça de violência.
A favor da legalização da prostituição, invoca-se a autonomia pessoal e a liberdade de escolha. No entanto, é na dignidade da pessoa (em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se funda a República Portuguesa) que assenta a tutela da sua liberdade e, por isso, o consentimento do próprio nunca pode servir para legitimar atentados a essa dignidade. Não é admissível a escravatura, mesmo que consentida, como nunca o é o trabalho em condições desumanas. A dignidade da pessoa humana, na célebre visão kantiana, impede que esta seja tratada (pelos outros ou por ela mesma) como meio e não como fim em si própria. A prostituição é certamente dos exemplos mais nítidos de redução da pessoa a objecto ou instrumento.
Por outro lado, é uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excepcionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa actividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Há inquéritos que revelam que cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem escolheriam outras alternativas se estas lhes fossem proporcionadas. Ao Estado deve ser pedido que proporcione essas alternativas, e não que se demita de o fazer através da legalização da prostituição.

Pedro Vaz Patto





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