06 janeiro 2006

 

Política criminal: que justificação?

A iniciativa legislativa de criação de uma Lei-Quadro de Política Criminal tem sido justificada como preenchimento do comando do art. 219º, nº 1 da Constituição, que desde a revisão de 1997 estabelece que o MP participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania.
Desta modificação do preceito resultará alguma obrigação legiferenda, nomeadamente a que agora é proposta pelo Governo?
Vejamos o que, a propósito, escreveu José Magalhães no seu Dicionário da Revisão Constitucional, Ed. Notícias, 1999 (e vale a pena transcrever): «A especial insistência do PSD numa alusão à execução da política criminal gerou inúmeros “ensaios de norma” – rejeitados por poderem colidir com a autonomia. Finalmente, em sede de Acordo de Revisão, atingiu-se a fórmula que veio mais tarde a ser proposta na CERC. Dela não decorre nenhuma colocação da hierarquia do MP na dependência de directrizes do Governo. No limite, se o Executivo entender que o supremo responsável do MP não cumpre a lei criminal e a estratégia que dela decorra, pode propor ao PR a demissão do PGR. E o Parlamento tem significativa margem de intervenção: definição do estatuto do MP, criação de regras processuais e outros instrumentos que assegurem a eficácia no combate aos diversos segmentos do crime; organização interna do MP adequada à articulação com magistraturas homólogas de outros países; dotação de meios; garantia do efectivo poder de direcção do MP sobre as polícias, etc.» (ob. cit., p. 196).
Como se vê, este autor, que foi um dos mais activos interventores da revisão constitucional de 1997 e foi um dos negociadores do tal Acordo de Revisão (reproduzido na ob. cit., p. 215), omite qualquer referência à necessidade de produção legislativa para dar cumprimento ao novo preceito e exclui expressamente a faculdade de emissão de directrizes do executivo ao MP. Enumera antes uma série de meios postos nas mãos quer do Governo quer da AR para intervirem na acção do MP sem lesão da sua autonomia e sem necessidade de emanação de directrizes dirigidas ao MP! Isto significa seguramente que tal faculdade não estava presente no espírito dos “revisores” de 1997 e que estes não consideravam ser necessária qualquer iniciativa legislativa como decorrência automática ou obrigatória da alteração do citado art. 219º, nº 1 da Constituição. Difícil é pois aceitar que agora se diga que existe uma omissão legislativa e que o projecto apresentado constitui o seu suprimento.
De salientar que também Gomes Canotilho, no seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, é omisso sobre a omissão. E é com cautela e alguma hesitação que se pronuncia sobre a alteração do texto constitucional. Embora comece por salientar que a participação do MP na execução da politica criminal é uma «outra competência de relevante significado político e jurídico-constitucional», umas linhas adiante refere que essa função é um “corolário lógico” das competências constitucionais do MP (logo, não traz qualquer novidade, não é assim?) e termina dizendo que o preceito «não deixa de criar algumas zonas de incerteza nas relações entre o executivo e o judiciário» (ob. cit., p. 597).
A análise mais desenvolvida sobre a nova redacção do art. 219º, nº 1 é porventura a de Paulo Dá Mesquita (em Direcção do inquérito penal e garantia judiciária, Coimbra Ed., 2003, pp. 340 ss.). Aí se conclui que a atribuição daquela função ao MP «reforça a necessidade de mecanismos reguladores dos fluxos informativos entre o MP e o Parlamento (…) e o Governo (…).» (p. 345). Mas não afirma a necessidade da criação de novos mecanismos (apenas o seu reforço) e fala de «fluxos informativos» e não directivos.
Também Figueiredo Dias se pronunciou sobre a matéria (em comunicação apresentada na sessão comemorativa dos 25 anos da primeira Lei Orgânica do MP, promovida pela PGR, comunicação essa publicada em 25 anos do Estatuto do Ministério Público, Coimbra Ed., 2005, pp. 71 ss.). Este autor parece acolher com entusiasmo a nova redacção constitucional (embora sem se referir expressamente a ela), dentro dos parâmetros de uma «responsabilidade comunitária» do MP, contraponto legitimador da sua autonomia. Questionando-se sobre a necessidade de uma reforma legislativa, furta-se a responder com precisão, embora pareça inclinar-se no sentido afirmativo, sem fornecer porém quaisquer pistas quanto aos contornos de tal «reforma».
O que pessoalmente concluo desta rápida indagação doutrinária é que não é minimamente seguro que a nova redacção do art. 219º, nº 1 da Constituição imponha a criação de uma novo mecanismo de informação (muito menos de direcção) entre os órgãos de soberania (AR e Governo) e o MP. Ainda que se entenda que a revisão do preceito atribuiu uma nova função ao MP, já existem mecanismos de intervenção por parte daqueles órgãos de soberania suficientes para lhe dar execução: são precisamente os enumerados por J. Magalhães. A que há que acrescentar a participação no CSMP de 5 membros eleitos pela AR e 2 personalidades designadas pelo MJ. E mais ainda: o poder do MJ de comparecer nas reuniões do MP «quando entender oportuno, para fazer comunicações e solicitar ou prestar esclarecimentos» (art. 80º do EMP). Tudo isso são instrumentos de controlo e responsabilização da actividade do MP por aqueles órgãos de soberania.
Estes mecanismos têm tido escassa ou nula utilização. Não foram aproveitadas as suas virtualidades. Por isso, o mínimo que se poderá dizer sobre a oportunidade da nova lei é que é prematura ou precipitada.





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