01 janeiro 2006

 

Novo quadro para a política criminal (5) - A Assembleia da República e o Governo - governamentalização?

No sistema constitucional português a Assembleia da República é o órgão com primazia na definição da política criminal, pelo que se apresenta como fundada a opção da proposta de lei do Governo de lhe atribuir o poder central de definição das coordenadas centrais de política criminal.

O Governo comparticipa na definição da política criminal, por força das suas competências de iniciativa legislativa (não reservada pois não existe nenhum princípio de inoficiosidade do Parlamento), pode legislar ao abrigo de lei parlamentar que o autorize em matéria de crimes e processo penal e tem poderes / deveres de avaliação de tendências da criminalidade, dos resultados das medidas legislativas, das entorses e disfunções na aplicação da lei e da necessidade de rectificações normativas. O Governo é ainda o órgão responsável pela política de segurança, pela tutela organizatória e disciplinar dos órgãos de polícia criminal e pela dotação de meios das autoridades judiciárias.

A questão nova suscitada pela proposta de lei do Governo centra-se no sentido e nas inovações operativas de um novo espaço de definição de política criminal por via de resoluções e não de leis.

Apenas quatro notas sobre o que tem sido dito relativamente aos poderes formais de aprovação das resoluções:

1. Dada a base constitucional do novo instrumento de «definição da política criminal», o carácter distintivo do mesmo parece ser a natureza não normativa das resoluções por comparação com as leis.

2. Daí que se deva reconhecer sentido lógico-jurídico à afirmação de que o poder da maioria parlamentar de emitir resoluções sobre política criminal não deva ser (no plano formal) mais limitado do que o poder legislativo que a mesma detém em matéria penal.

3. Mas se é um imperativo lógico-jurídico, e não político, que está na base de tais opções também não tem sentido condicionar o poder parlamentar (e não apenas das conjunturais maiorias simples) de iniciativa própria, que persiste quanto às leis, mas que inexiste em sede das noveis resoluções (cuja aprovação e alteração estará, na versão proposta, sempre dependente, do impulso governamental, vejam-se arts. 7.º, nº 1 e 8.º, nº 2, da proposta de lei );

4. Até porque tal limitação dos poderes constitucionais da Assembleia da República por via de simples leis ordinárias é, no mínimo, constitucionalmente duvidoso.

Acrescente-se que a redução da margem de acção do parlamento, por contraponto ao Governo, tem uma outra manifestação mais subtil no próprio procedimento de preparação das resoluções, centralizando-se no Governo o processo de audições prévias (art. 8.º da proposta) e não no órgão decisor, não se regulando, sequer, um procedimento parlamentar específico para aprovação das resoluções (que vá além da simples audição do procurador-geral da República fixada no art. 9.º), em particular, não se fazendo qualquer menção a um trabalho prévio em comissão parlamentar (no caso da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), que além de acentuar o escrutínio democrático e a dignificação parlamentar, poderia constituir um espaço para reforçar a análise responsável e independente das propostas.

Já em sede de prestação de contas, a limitação dos relatórios do governo à prevenção criminal e à execução de penas (art. 12.º) é um sintoma revelador de que por essa via se pode subtrair o executivo à via mais plena de escrutínio, no quadro parlamentar, das suas responsabilidades, quer no que concerne aos órgãos de polícia criminal (veja-se o que se referiu aqui), quer no que concerne à dotação de meios das autoridades judiciárias (materiais, humanos e mesmo legislativos).

Em síntese, a proposta de lei tem elementos de governamentalização do processo de iniciativa de definição da política criminal (embora preservando o poder de decisão final da maioria parlamentar, aliás, necessário para evitar a inconstitucionalidade da proposta) prevendo de forma deficitária mecanismos sistemáticos para a prestação de contas pelo governo relativamente a uma importante parcela das suas funções enquanto cabeça do poder executivo.






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