09 janeiro 2006

 

Sobre a cegueira

No número de 6ª-feira, o Público trazia na 1ª página, logo ao cimo, uma notícia intitulada «Homicidas beneficiam de indulto dado por Sampaio». Não deixa de ser estranho como um acto eminentemente oficial como este seja atribuído de uma forma muito coloquial ao «Sampaio», em vez de ao PR… Mas o pior do título era evidentemente o alarmismo que objectivamente lançava: os homicidas (todos?) estão à solta na rua, cuidado! No curto texto inserido na 1ª página, o título sofria uma primeira desdramatização: afinal tinha havido apenas 56 indultos e, destes, de «pelo menos» 10 indivíduos condenados por homicídio; e acrescentava-se que «graves problemas de saúde ou filhos menores» seriam as razões preponderantes que fundamentaram os indultos. Nas páginas interiores, desenvolvia-se e contextualizava-se o assunto, dando conta da opinião de dois ilustres juristas, professores universitários, Rui Pereira e Paulo Rangel, que explicavam os fundamentos históricos e constitucionais do direito de indulto, o seu carácter excepcional, assim fundamentando e credibilizando a decisão do PR. Quem lesse tudo ficava bem informado. Quem lesse apenas o título da 1ª página ficava no mínimo alarmado. Isso não poderia certamente ser ignorado pela autora da notícia ou pelo director de serviço.
A confirmação dos perigos do título veio logo no dia seguinte. Uma colaboradora habitual, Helena Matos, jornalista e historiadora, directora de uma revista muito badalada (Atlântico), aproveitou de imediato a deixa e logo no jornal do dia seguinte publicou uma crónica intitulada Cega. Todos os lugares comuns da direita reaccionária sobre a criminalidade ali são expostos e não falta mesmo o choradinho da comparação do trabalhador despedido com o que é vítima de um assalto (a deixar no ar que é muito melhor ser despedido do que assaltado!) e ainda um “exemplo edificante”: o de um tal Francisco Ramírez (?), que matou a tiro dois assaltantes que lhe invadiram a casa (ignora a autora que o direito de legítima defesa é incontestável?). É uma amálgama confusa de histórias e argumentos que não conduz a uma qualquer proposta ou sequer conclusão. Apenas a mais uma acusação contra a “justiça”, a tal “cega”, evidentemente. Presume-se que seja uma justiça que está do lado dos maus. É interessante constatar como a antropomorfização da justiça é uma constante no discurso mediático, sempre para a sobrecarregar de culpas e anátemas, escamoteando o pluralismo e a diversidade que caracterizam necessariamente a actividade judiciária. A esse tema voltarei. Por agora, resta-me (tentar) denunciar a cegueira dos que julgam ver.





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