09 fevereiro 2006
Portugal e a licenciosidade
Circunstâncias particulares impediram-me nos últimos dias de acompanhar a comunicação social e a blogosfera portuguesas, até que ontem à noite tive oportunidade de passar uma vista de olhos pelos jornais e aí li um texto imputado a Sua Excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.
Hoje, só ao fim da tarde, pude tentar a confirmação no sítio do ministério dos negócios estrangeiros, onde encontrei a declaração do sr. Ministro «sobre a crise dos cartoons». Constatei então que constitui um texto cuja síntese e riqueza geram um desafio hermenêutico para o intérprete, em particular para o jurista já que lá se fala de direitos, em particular da «liberdade de expressão», da «liberdade religiosa» e dos limites da primeira.
Este postal é apenas uma confissão ou um pedido de ajuda, pois em nenhum dos vários segmentos em que se revelou necessária interpretação consegui chegar a uma resposta.
Hoje, só ao fim da tarde, pude tentar a confirmação no sítio do ministério dos negócios estrangeiros, onde encontrei a declaração do sr. Ministro «sobre a crise dos cartoons». Constatei então que constitui um texto cuja síntese e riqueza geram um desafio hermenêutico para o intérprete, em particular para o jurista já que lá se fala de direitos, em particular da «liberdade de expressão», da «liberdade religiosa» e dos limites da primeira.
Este postal é apenas uma confissão ou um pedido de ajuda, pois em nenhum dos vários segmentos em que se revelou necessária interpretação consegui chegar a uma resposta.
Desde logo fui incapaz de deslindar a quem imputar a declaração:
Se ao Estado português pois a declaração inicia-se por «Portugal lamenta...» (e na afirmativa, avaliar se nesta matéria existiu concertação de órgãos de soberania, nomeadamente com a Presidência da República)
Se ao executivo (realmente não parece que deva ser sua excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a expressar as posições do Presidente da República)
Se a Sua Excelência o sr. Ministro de Estado e dos Negócios estrangeiros que assina o texto?
Se ao sr. professor doutor de direito já que no texto se encerram vários elementos retóricos de uma lição?
Se ao dramaturgo que também é, dado o tom dramático (e até parece que esse autor reconhecido, para gáudio colectivo, pode, a breve prazo, ser um dos «autores nacionais» representados no Dª Maria)?
Se o historiador marcado pelo exemplo da personagem que o fascina, um tal de D. Afonso Henriques que se destacou pelo exemplo de ecumenismo respeitoso do islamismo e que não suportava quaisquer abusos que fossem perpetrados contra os muçulmanos pelas hordas do norte da Europa?
Nem sequer consegui perceber quem seriam os destinatários:
Serão os portugueses que ficam assim a saber a distinção entre liberdade e licenciosidade (o texto até está escrito na língua de Camões)?
Será a imprensa já que o texto vem na entrada relativa a «informações à imprensa»,
O mundo? Já que é o titular da pasta dos negócios estrangeiros que comunica de forma segura e clara logo no primeiro parágrafo que «Portugal lamenta e discorda da publicação».
As vítimas? Os muçulmanos atingidos, em especial aqueles cujo sofrimento é mais intenso sempre revivido quando na sua leitura diária compulsam a imprensa europeia e por força dessa dor se manifestam contra a violação da sua «liberdade religiosa»;
Os agressores? Os dinamarqueses, em particular o autor do cartoon, o jornal que o publica e o Estado dinamarquês que não só deixa que o mesmo seja publicado como, pelo menos até à elaboração da citada declaração, deixou impunes os autores da heresia;
A própria natureza do texto escapou-me:
Será um texto jurídico e normativo? Sobre «o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que se professa»; ou
Teológico? Pois lá esclarece-se, em tom dogmático, que «Para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da sua Mãe, a Virgem Maria», «Para os muçulmanos um dos principais símbolos é a figura do Profeta Maomé»; e «as três religiões monoteístas (cristã, muçulmana e hebraica) descendem todas do mesmo profeta, Abraão»; ou
Histórico? «O que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável»; ou uma simples
Crítica de jornal, onde se «lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas»?
E em face de tantas lacunas gnoseológicas fui totalmente incapaz de atingir a teleologia da declaração:
Desde logo, por força das dúvidas relativas ao declarante e destinatários:
Por ex. se o autor for o dramaturgo será que está a fazer teatro? E se for o historiador? será que tem algum interesse em escrever história sobre a causa da «guerra das religiões» ou apenas dar o testemunho de uma estória exemplar? Mas mesmo que seja o subscritor (apenas numa ou na sua pluralidade de vestes não só de professor e jurista, mas também ministro, dramaturgo, historiador, activista política e crítico de arte) quem serão os destinatários e porquê: Os muçulmanos que estão indignados, pretendendo-se um discurso do tipo «ouçam bem quem ‘lamenta e discorda’», e acha que a vossa «liberdade religiosa» foi atingida, e que quem o fez e aceitou tal publicação é um... é um... é um... é um licencioso (eventualmente esse até será uma boa palavra de luta para aqueles cuja liberdade foi atingida, ainda que de uma forma caricatural, para ser utilizada nos seus ajuntamentos pacíficos (tipo, «dinamarqueses seus licenciosos»). Oh não será isso, sua excelência que tem uma reconhecida coragem (demonstrada em vários episódios que por vezes são esquecidos), não está propriamente preocupado com as vítimas dos licenciosos que viram atingida a sua liberdade religiosa mas com os bárbaros agressores da liberdade religiosa, os licenciosos dinamarqueses.
No fundo quer o texto seja atribuído à pessoa de quem o assina ou a Portugal em nome de quem é escrito: existe uma confluência de variações possíveis; sou(mos) europeu(s) mas não licencioso(s), discordo(amos) da publicação daqueles cartoons, etc, etc
E se o destinatário for a imprensa? O texto é uma orientação política para a análise da oficialmente designada «crise dos cartoons»? Ou uma advertência para futuro sobre a «discordância» quanto à «publicação» de certos cartoons e textos, e sobre a delimitação da liberdade. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas...
A falha de interpretação é tão plena que confesso que nem sequer interiorizei verdadeiramente a norma moral que tão generosamente me é oferecida «A liberdade sem limites não é liberdade, mas licenciosidade», pois se este não fosse um «blog decente» , e debalde o esforço de adequação do intérprete à seriedade do interpretado, se calhar não resistiria a, numa atitude algo licenciosa, concluir que talvez a declaração de S. Excelência o Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros não passe de um texto de ... reduzido interesse!
Se ao Estado português pois a declaração inicia-se por «Portugal lamenta...» (e na afirmativa, avaliar se nesta matéria existiu concertação de órgãos de soberania, nomeadamente com a Presidência da República)
Se ao executivo (realmente não parece que deva ser sua excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a expressar as posições do Presidente da República)
Se a Sua Excelência o sr. Ministro de Estado e dos Negócios estrangeiros que assina o texto?
Se ao sr. professor doutor de direito já que no texto se encerram vários elementos retóricos de uma lição?
Se ao dramaturgo que também é, dado o tom dramático (e até parece que esse autor reconhecido, para gáudio colectivo, pode, a breve prazo, ser um dos «autores nacionais» representados no Dª Maria)?
Se o historiador marcado pelo exemplo da personagem que o fascina, um tal de D. Afonso Henriques que se destacou pelo exemplo de ecumenismo respeitoso do islamismo e que não suportava quaisquer abusos que fossem perpetrados contra os muçulmanos pelas hordas do norte da Europa?
Nem sequer consegui perceber quem seriam os destinatários:
Serão os portugueses que ficam assim a saber a distinção entre liberdade e licenciosidade (o texto até está escrito na língua de Camões)?
Será a imprensa já que o texto vem na entrada relativa a «informações à imprensa»,
O mundo? Já que é o titular da pasta dos negócios estrangeiros que comunica de forma segura e clara logo no primeiro parágrafo que «Portugal lamenta e discorda da publicação».
As vítimas? Os muçulmanos atingidos, em especial aqueles cujo sofrimento é mais intenso sempre revivido quando na sua leitura diária compulsam a imprensa europeia e por força dessa dor se manifestam contra a violação da sua «liberdade religiosa»;
Os agressores? Os dinamarqueses, em particular o autor do cartoon, o jornal que o publica e o Estado dinamarquês que não só deixa que o mesmo seja publicado como, pelo menos até à elaboração da citada declaração, deixou impunes os autores da heresia;
A própria natureza do texto escapou-me:
Será um texto jurídico e normativo? Sobre «o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que se professa»; ou
Teológico? Pois lá esclarece-se, em tom dogmático, que «Para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da sua Mãe, a Virgem Maria», «Para os muçulmanos um dos principais símbolos é a figura do Profeta Maomé»; e «as três religiões monoteístas (cristã, muçulmana e hebraica) descendem todas do mesmo profeta, Abraão»; ou
Histórico? «O que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável»; ou uma simples
Crítica de jornal, onde se «lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas»?
E em face de tantas lacunas gnoseológicas fui totalmente incapaz de atingir a teleologia da declaração:
Desde logo, por força das dúvidas relativas ao declarante e destinatários:
Por ex. se o autor for o dramaturgo será que está a fazer teatro? E se for o historiador? será que tem algum interesse em escrever história sobre a causa da «guerra das religiões» ou apenas dar o testemunho de uma estória exemplar? Mas mesmo que seja o subscritor (apenas numa ou na sua pluralidade de vestes não só de professor e jurista, mas também ministro, dramaturgo, historiador, activista política e crítico de arte) quem serão os destinatários e porquê: Os muçulmanos que estão indignados, pretendendo-se um discurso do tipo «ouçam bem quem ‘lamenta e discorda’», e acha que a vossa «liberdade religiosa» foi atingida, e que quem o fez e aceitou tal publicação é um... é um... é um... é um licencioso (eventualmente esse até será uma boa palavra de luta para aqueles cuja liberdade foi atingida, ainda que de uma forma caricatural, para ser utilizada nos seus ajuntamentos pacíficos (tipo, «dinamarqueses seus licenciosos»). Oh não será isso, sua excelência que tem uma reconhecida coragem (demonstrada em vários episódios que por vezes são esquecidos), não está propriamente preocupado com as vítimas dos licenciosos que viram atingida a sua liberdade religiosa mas com os bárbaros agressores da liberdade religiosa, os licenciosos dinamarqueses.
No fundo quer o texto seja atribuído à pessoa de quem o assina ou a Portugal em nome de quem é escrito: existe uma confluência de variações possíveis; sou(mos) europeu(s) mas não licencioso(s), discordo(amos) da publicação daqueles cartoons, etc, etc
E se o destinatário for a imprensa? O texto é uma orientação política para a análise da oficialmente designada «crise dos cartoons»? Ou uma advertência para futuro sobre a «discordância» quanto à «publicação» de certos cartoons e textos, e sobre a delimitação da liberdade. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas...
A falha de interpretação é tão plena que confesso que nem sequer interiorizei verdadeiramente a norma moral que tão generosamente me é oferecida «A liberdade sem limites não é liberdade, mas licenciosidade», pois se este não fosse um «blog decente» , e debalde o esforço de adequação do intérprete à seriedade do interpretado, se calhar não resistiria a, numa atitude algo licenciosa, concluir que talvez a declaração de S. Excelência o Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros não passe de um texto de ... reduzido interesse!