03 fevereiro 2006
Carta de uma profissional
A propósito do debate sobre a prostituição que se tem travado neste blogue, permito-me dar à estampa uma carta que me foi endereçada e que o Jornal de Notícias me fez chegar às mãos. Creio não ofender nenhum direito, até porque não me foi pedida reserva e, além disso, a subscritora da carta não está identificada a não ser com um nome que creio ser uma espécie de pseudónimo. Publico-a tal e qual, incluindo os imerecidos elogios e também os reparos muito oportunos que faz. Deixo o conteúdo à reflexão do leitor.
Ex.mo Senhor :
Costumo ler os seus artigos no Jornal de Notícias, como os de outros colunistas. Permita-me que lhe diga que os aprecio, até porque sendo de pequeno formato lêem-se num instante.
Há dias, o senhor escreveu um desses artigos em que falou, entre outras coisas, da prostituição, insurgindo-se contra uma tendência da sociedade actual para reprimir comportamentos ou modos de vida que fogem dos padrões da normalidade. O melhor, porém, será citar a passagem que achei mais interessante, uma vez que tenho o dito artigo, que se chama «Doença e desvio», na minha frente. Depois de afirmar que o exercício da prostituição não deve ser perseguido pelo Estado a não ser em casos em que estejam em causa valores fundamentais relacionados com tal exercício (não valores ligados a qualquer moralidade, evidentemente), o senhor escreve que se está a assistir a uma intolerância «em relação a práticas ou modos de vida que, sendo ou não viciosos, sendo ou não conformes às regras de qualquer política de saúde ou de qualquer sistema de moral (…) ultrapassam aquele limite em que os conflitos de interesses, bens ou direitos reclamam uma solução coactiva, para se imporem em nome de qualquer abstracto desígnio – o Bem, a Saúde, a Vida Virtuosa – de forma mais ou menos camuflada e justificando todo o tipo de perseguições e atropelos».
Ora, não posso estar mais de acordo consigo, mas antes de prosseguir permita-me que lhe chame a atenção para uma possível incorrecção: o senhor, quando escreveu «ultrapassam aquele limite» queria mesmo dizer isso, ou pretendia antes dizer «ficam aquém daquele limite»? É que, se os comportamentos a que o senhor se refere não têm idoneidade suficiente para desencadear uma solução coactiva, então é porque ficam aquém desse ponto e não além. Mas, por outro lado, desencadeando-se tal reacção coactiva sem que esteja verificado o condicionalismo adequado, ocorre um excesso, e daí provavelmente a solicitação inconsciente para o termo «ultrapassar». Terei razão? Bom, mas passemos adiante.
Como disse, estou inteiramente de acordo consigo no que se refere ao combate à prostituição. Uma coisa é a moral e outra, o direito. Devo dizer-lhe que exerço a prostituição, por inteira e livre opção minha. Tirei um curso superior, mas as opções de emprego que se me ofereciam não eram do meu agrado e, além disso, não me proporcionavam os rendimentos que eu ambicionava. Sempre desejei boa casa, bom carro, belas roupas e o acesso a uma multidão de coisas que a chamada «sociedade de consumo» proporciona, desde que se tenha o indispensável plafond. Foram, pois, razões económicas que me impeliram para esta vida, mas não razões estritamente económicas, não sei se me entende. Se quiser, foram razões ideológicas. Podia ter feito como outras que conheço: desencaminhar um indivíduo solidamente instalado, de preferência ultrapassando a meia idade, com boa profissão, com dinheiro, com estatuto, fazer-lhe um filho e, na melhor oportunidade, «dar às de vi lá Diogo» e apanhar-lhe parte da fortuna enquanto com ele vivesse e depois em nome do filho, ficando no fim com a casa de morada de família. Entre essa situação e a prostituição declarada, optei por esta. E devo dizer-lhe: não sinto o mínimo arrependimento.
Trabalho sozinha, não dependo de ninguém a não ser dos meus clientes, que me dou ao luxo de escolher, e ponho todo o empenho nessa actividade, esforçando-me ao máximo por proporcionar os melhores serviços, pois cultivo com esmero a ars erotica. Poderia talvez apelidar-se-me de libertina (uma palavra que tem uma conotação muito à século XVIII, a grande época da libertinagem e da literatura libertina), mas prefiro ser considerada uma profissional no verdadeiro sentido da palavra, isto é, alguém que sabe do métier e que não se envergonha de ser bem recompensado por isso.
Catherine Millet, a famosa chefe de redacção da revista artística «Art Press» que escreveu há poucos anos atrás «La Vie Sexuelle de Chaterine M.» (uma autobiografia), sendo uma libertina (ajustar-se-lhe-á esse apodo?) que procurava com fervor místico todas as vias do erotismo, confessa todavia que a sua única tentativa falhada foi a da prostituição, não obstante o fascínio exercido, como já é clássico, pelo personagem de Catherine Deneuve no também célebre filme «Belle de Jour», de Luís Buñuel. Isto porque não era capaz de criar distância em relação à pessoa do cliente que se lhe apresentava, através da montagem de uma encenação.
Ora, por minha banda, nada mais fácil. Sou como os advogados em relação às causas dos clientes, não se envolvendo emocionalmente nelas (coitados deles!), mas investindo nelas todo o saber profissional. Não entrego nada de mim, a não ser tudo o que em mim se reduz a um savoir faire. Vender o corpo? Ora! Ora! Ora! Patranhas de moralista! O que eu vendo são ilusões honestas e muito humanas, onde tudo está minuciosamente concebido para dar o máximo prazer ao cliente, desde a montagem de um décor intimista, até à ilusão de um envolvimento onde há um escrupuloso trabalho dos corpos, de que tenho de ser simultaneamente parte actuante e mestra, sem nunca perder o domínio inteiramente consciente da situação. É claro que daqui retiro prazer: o prazer do trabalho bem feito. Será condenável proporcionar prazer sexual a outrem a troco de dinheiro? Que diferença há entre proporcionar esse prazer e outras formas de prazer, igualmente a troco de dinheiro e às vezes mais condenáveis, embora totalmente lícitas? Há homens (estamos a falar da vertente feminina da prostituição) que nunca conheceriam o prazer sexual se não fosse o trabalho das profissionais. Não sei se sabe que há sexólogos que recorreram ao trabalho de profissionais para a cura dos seus doentes. Olhe, por exemplo, os Autores de «Os Prazeres do Sexo», ainda hoje um dos melhores manuais sobre a matéria, inteiramente liberto de concepções moralistas, os americanos Alex Comfort., M. B. e Ph. D.
Quanto àqueles que consideram as prostitutas necessariamente vítimas dos homens (uma versão moralista que se encobre numa pseudo-libertação da mulher) dão-me vontade de rir. Há mulheres que se dedicam à prostituição que são vítimas, sem dúvida nenhuma, desde aquelas que são forçadas a isso e mesmo violentadas, àquelas que o fazem por pura miséria. Uma coisa pode andar aliada à outra, mas não se confundam as situações: crime, compulsão da miséria e opção livremente escolhida. A menos que haja uns iluminados que queiram impor as suas concepções aos outros. E parece que há. Recorrem a vários subterfúgios: a dignidade humana, por exemplo. Que o exercício da prostituição implica sempre, dizem, uma limitação de direitos não consentida, porque contrária à dignidade humana. E que o homem que procura a prostituta exerce sempre uma violência sobe a mulher, justificando-se a sua perseguição criminal, como acontece na Suécia. Que Deus nos livre de tais guardiães da dignidade humana. Imagine o senhor que, segundo esses senhores, eu escolhi um caminho contrário à minha dignidade. E querem agora tutelar-me, como se fossem os meus anjos da guarda. Rejeito tal tutela e as asinhas seráficas desses senhores que procuram estender o seu manto protector sobre a minha pessoa. Lembrei-me do seu artigo e daquela parte dele em que o senhor fala de abstractos desígnios (eu diria sinistros) em nome dos quais querem agora submeter-nos à força aos seus cânones moralistas. Diga-me com franqueza: não lhe parece que esta pretensa dignidade humana é equivalente à Vida Virtuosa de que o senhor fala no seu artigo? E que é uma coisa verdadeiramente temível? Em suma: não acha que esta dignidade humana é uma indignidade?
Pois aqui lhe deixo a sugestão para novas reflexões em futuros artigos que muito prezaria que o senhor escrevesse no seu jornal. Chegue-lhes!
Aproveito para lhe renovar o meu apreço por aquilo que escreve e para lhe expressar os sentimentos da mais elevada
Consideração
Georgette
Segue-se um post scriptum, que me dispenso de reproduzir, até porque não tem interesse para o debate aqui em foco.
Ex.mo Senhor :
Costumo ler os seus artigos no Jornal de Notícias, como os de outros colunistas. Permita-me que lhe diga que os aprecio, até porque sendo de pequeno formato lêem-se num instante.
Há dias, o senhor escreveu um desses artigos em que falou, entre outras coisas, da prostituição, insurgindo-se contra uma tendência da sociedade actual para reprimir comportamentos ou modos de vida que fogem dos padrões da normalidade. O melhor, porém, será citar a passagem que achei mais interessante, uma vez que tenho o dito artigo, que se chama «Doença e desvio», na minha frente. Depois de afirmar que o exercício da prostituição não deve ser perseguido pelo Estado a não ser em casos em que estejam em causa valores fundamentais relacionados com tal exercício (não valores ligados a qualquer moralidade, evidentemente), o senhor escreve que se está a assistir a uma intolerância «em relação a práticas ou modos de vida que, sendo ou não viciosos, sendo ou não conformes às regras de qualquer política de saúde ou de qualquer sistema de moral (…) ultrapassam aquele limite em que os conflitos de interesses, bens ou direitos reclamam uma solução coactiva, para se imporem em nome de qualquer abstracto desígnio – o Bem, a Saúde, a Vida Virtuosa – de forma mais ou menos camuflada e justificando todo o tipo de perseguições e atropelos».
Ora, não posso estar mais de acordo consigo, mas antes de prosseguir permita-me que lhe chame a atenção para uma possível incorrecção: o senhor, quando escreveu «ultrapassam aquele limite» queria mesmo dizer isso, ou pretendia antes dizer «ficam aquém daquele limite»? É que, se os comportamentos a que o senhor se refere não têm idoneidade suficiente para desencadear uma solução coactiva, então é porque ficam aquém desse ponto e não além. Mas, por outro lado, desencadeando-se tal reacção coactiva sem que esteja verificado o condicionalismo adequado, ocorre um excesso, e daí provavelmente a solicitação inconsciente para o termo «ultrapassar». Terei razão? Bom, mas passemos adiante.
Como disse, estou inteiramente de acordo consigo no que se refere ao combate à prostituição. Uma coisa é a moral e outra, o direito. Devo dizer-lhe que exerço a prostituição, por inteira e livre opção minha. Tirei um curso superior, mas as opções de emprego que se me ofereciam não eram do meu agrado e, além disso, não me proporcionavam os rendimentos que eu ambicionava. Sempre desejei boa casa, bom carro, belas roupas e o acesso a uma multidão de coisas que a chamada «sociedade de consumo» proporciona, desde que se tenha o indispensável plafond. Foram, pois, razões económicas que me impeliram para esta vida, mas não razões estritamente económicas, não sei se me entende. Se quiser, foram razões ideológicas. Podia ter feito como outras que conheço: desencaminhar um indivíduo solidamente instalado, de preferência ultrapassando a meia idade, com boa profissão, com dinheiro, com estatuto, fazer-lhe um filho e, na melhor oportunidade, «dar às de vi lá Diogo» e apanhar-lhe parte da fortuna enquanto com ele vivesse e depois em nome do filho, ficando no fim com a casa de morada de família. Entre essa situação e a prostituição declarada, optei por esta. E devo dizer-lhe: não sinto o mínimo arrependimento.
Trabalho sozinha, não dependo de ninguém a não ser dos meus clientes, que me dou ao luxo de escolher, e ponho todo o empenho nessa actividade, esforçando-me ao máximo por proporcionar os melhores serviços, pois cultivo com esmero a ars erotica. Poderia talvez apelidar-se-me de libertina (uma palavra que tem uma conotação muito à século XVIII, a grande época da libertinagem e da literatura libertina), mas prefiro ser considerada uma profissional no verdadeiro sentido da palavra, isto é, alguém que sabe do métier e que não se envergonha de ser bem recompensado por isso.
Catherine Millet, a famosa chefe de redacção da revista artística «Art Press» que escreveu há poucos anos atrás «La Vie Sexuelle de Chaterine M.» (uma autobiografia), sendo uma libertina (ajustar-se-lhe-á esse apodo?) que procurava com fervor místico todas as vias do erotismo, confessa todavia que a sua única tentativa falhada foi a da prostituição, não obstante o fascínio exercido, como já é clássico, pelo personagem de Catherine Deneuve no também célebre filme «Belle de Jour», de Luís Buñuel. Isto porque não era capaz de criar distância em relação à pessoa do cliente que se lhe apresentava, através da montagem de uma encenação.
Ora, por minha banda, nada mais fácil. Sou como os advogados em relação às causas dos clientes, não se envolvendo emocionalmente nelas (coitados deles!), mas investindo nelas todo o saber profissional. Não entrego nada de mim, a não ser tudo o que em mim se reduz a um savoir faire. Vender o corpo? Ora! Ora! Ora! Patranhas de moralista! O que eu vendo são ilusões honestas e muito humanas, onde tudo está minuciosamente concebido para dar o máximo prazer ao cliente, desde a montagem de um décor intimista, até à ilusão de um envolvimento onde há um escrupuloso trabalho dos corpos, de que tenho de ser simultaneamente parte actuante e mestra, sem nunca perder o domínio inteiramente consciente da situação. É claro que daqui retiro prazer: o prazer do trabalho bem feito. Será condenável proporcionar prazer sexual a outrem a troco de dinheiro? Que diferença há entre proporcionar esse prazer e outras formas de prazer, igualmente a troco de dinheiro e às vezes mais condenáveis, embora totalmente lícitas? Há homens (estamos a falar da vertente feminina da prostituição) que nunca conheceriam o prazer sexual se não fosse o trabalho das profissionais. Não sei se sabe que há sexólogos que recorreram ao trabalho de profissionais para a cura dos seus doentes. Olhe, por exemplo, os Autores de «Os Prazeres do Sexo», ainda hoje um dos melhores manuais sobre a matéria, inteiramente liberto de concepções moralistas, os americanos Alex Comfort., M. B. e Ph. D.
Quanto àqueles que consideram as prostitutas necessariamente vítimas dos homens (uma versão moralista que se encobre numa pseudo-libertação da mulher) dão-me vontade de rir. Há mulheres que se dedicam à prostituição que são vítimas, sem dúvida nenhuma, desde aquelas que são forçadas a isso e mesmo violentadas, àquelas que o fazem por pura miséria. Uma coisa pode andar aliada à outra, mas não se confundam as situações: crime, compulsão da miséria e opção livremente escolhida. A menos que haja uns iluminados que queiram impor as suas concepções aos outros. E parece que há. Recorrem a vários subterfúgios: a dignidade humana, por exemplo. Que o exercício da prostituição implica sempre, dizem, uma limitação de direitos não consentida, porque contrária à dignidade humana. E que o homem que procura a prostituta exerce sempre uma violência sobe a mulher, justificando-se a sua perseguição criminal, como acontece na Suécia. Que Deus nos livre de tais guardiães da dignidade humana. Imagine o senhor que, segundo esses senhores, eu escolhi um caminho contrário à minha dignidade. E querem agora tutelar-me, como se fossem os meus anjos da guarda. Rejeito tal tutela e as asinhas seráficas desses senhores que procuram estender o seu manto protector sobre a minha pessoa. Lembrei-me do seu artigo e daquela parte dele em que o senhor fala de abstractos desígnios (eu diria sinistros) em nome dos quais querem agora submeter-nos à força aos seus cânones moralistas. Diga-me com franqueza: não lhe parece que esta pretensa dignidade humana é equivalente à Vida Virtuosa de que o senhor fala no seu artigo? E que é uma coisa verdadeiramente temível? Em suma: não acha que esta dignidade humana é uma indignidade?
Pois aqui lhe deixo a sugestão para novas reflexões em futuros artigos que muito prezaria que o senhor escrevesse no seu jornal. Chegue-lhes!
Aproveito para lhe renovar o meu apreço por aquilo que escreve e para lhe expressar os sentimentos da mais elevada
Consideração
Georgette
Segue-se um post scriptum, que me dispenso de reproduzir, até porque não tem interesse para o debate aqui em foco.