11 fevereiro 2006

 

A sagrada liberdade de expressão

Escrevi um artigo no JN sobre a liberdade de expressão, a propósito das mundializadas caricaturas dinamarquesas. Escrevi contra a corrente (uma certa corrente) e com a intenção de também provocar. Mas depois quase me arrependi. Escrever é arriscar uma opinião na flutuação das águas e, justamente por isso, Augusto Abelaira titulava as suas saudosas crónicas de «Escrever na Água». No próprio dia em que mandei a crónica para o JN, fui no comboio para Lisboa com o meu amigo Manuel António Pina, que tinha escrito sobre o tema em sentido oposto ao meu. Debatemos o assunto e chegámos à conclusão que estávamos de acordo quanto ao essencial, mas divergíamos na forma. De qualquer maneira, se pudesse retirar o escrito, tinha-o feito. No dia seguinte – dia da publicação do artigo – nem quis olhar para o jornal. Sucede que ontem, sexta-feira, li no «Público» a opinião de Saramago, a convergir com a minha. Ao lado, porém, vinha a opinião do filósofo Fernando Gil, em sentido diametralmente oposto. A conclusão a tirar é a seguinte: o tema da liberdade de expressão converteu-se, afinal, num tema fracturante, mesmo deste lado do mundo. E o que é que não é fracturante nos dias que correm, em que deixaram de se verificar os alinhamentos nítidos em relação a questões fundamentais e não fundamentais, com frequência se deparando posições de pessoas à esquerda ou à direita que nos surpreendem?
O texto da minha crónica era o seguinte:
«A liberdade de expressão é um valor fundamental. Tão fundamental, que às vezes ela é defendida de uma forma fundamentalista. Tendo sido duramente conquistada ao espaço do sagrado em nome da autonomia humana, frequentemente se tem visto entronizá-la no espaço do sagrado. Tornou-se, por isso, um valor indiscutível, uma espécie de dogma de carácter laico. Não é por acaso que tão correntemente se adjectiva a liberdade de expressão de «sagrada» - a «sagrada liberdade de expressão». Se com isso se pretende acentuar o carácter fundamental da liberdade de expressão, quer como direito ou liberdade que está na base de quase todos os outros direitos, liberdades e garantias, quer ainda como direito que faz parte daquele núcleo de direitos impostergáveis do indivíduo ou do cidadão, certo é que, muitas vezes, se descamba para a sua defesa como valor indiscutível, dogmático e sacralizado. A liberdade de expressão não se discute e ponto final. É assim que se tem processado uma grande parte da discussão travada em torno das caricaturas de Maomé. Dessa forma, opõe-se uma espécie de fundamentalismo a outro fundamentalismo, um de carácter laico e outro, religioso. Ora, a liberdade de expressão claro que é fundamental, mas não se impõe como um absoluto. O que está em causa é o seu uso concreto em face de outros valores. E se a liberdade de expressão pode exercer-se sobre todo e qualquer objecto, aí residindo provavelmente o seu absoluto, é preciso ponderar na prática o seu uso e a forma do seu uso, ou seja, ver em que circunstâncias é que ela vai ser exercida, a finalidade que se pretende obter e o modo e o meio que se vão usar para atingir esse fim, porque tudo isso é relevante. Não se trata de pura cedência, como às vezes se ouve; trata-se de ponderação».
A opinião de Saramago é a seguinte:
«Que algumas manifestações tenham sido organizadas não deve surpreender-nos, porque já se sabe como é fácil. E também não me surpreendeu a violência com que se deram. O que me apanhou mesmo desprevenido foi a irresponsabilidade do autor ou dos autores dos desenhos. Alguns opinam que a liberdade de expressão é um direito absoluto, o único direito absoluto que existe, enquanto todos os outros são relativos. A realidade crua impõe limites. Imaginemos que o desenhador dinamarquês, em vez de fazer um desenho a ridicularizar Maomé, faz um dizendo que o director do jornal é um imbecil. Seria muito corajoso, mas no dia seguinte estaria provavelmente na rua. Autocensura? Não se trataria de autocensura, mas de usar o senso comum. Numa situação como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que há em redor destes temas, o senso comum ditar-nos-ia o que fazer. Alguém verdadeiramente responsável que tivesse consciência de que um desenho pode ser como lançar gasolina sobre o fogo, guardá-lo-ia para melhor ocasião.»
É o autor do «Evangelho Sobre Jesus Cristo», um livro que um Secretário de Estado queria mandar para a fogueira e que, na realidade pôs no índex, quem assim fala. Não que a opinião de Saramago deva ser sobrevalorizada, mas de qualquer maneira a sua opinião ilustra o que comecei por dizer: hoje não há praticamente tema nenhum que seja indiscutível e que congregue no mesmo barco pessoas aparentemente da mesma família. Há no entanto uma posição que se me assemelha clara: a liberdade de expressão não deve ser limitada para além dos limites que a lei e a Constituição impõem para salvaguarda de outros direitos fundamentais. Nomeadamente, não deve ser limitada pela pressuposta intocabilidade de símbolos ou dogmas religiosos ou por uma espécie de interdito relativamente ao sagrado. Nem tão pouco por uma pressuposta ofensa de sentimentos religiosos de quem quer que seja. Neste campo, o que há a salvaguardar é a liberdade de culto e de crença, e temos de reconhecer que as caricaturas, por muito inoportunas e de mau gosto que sejam, não lesam esses direitos. O problema é outro. Se a pintora Paula Rego, por exemplo, fizesse nesta altura uma série de quadros, no seu conhecido estilo, em que satirizasse pesadamente o profeta Maomé e a relação da religião com as «guerras santas», isso não seria certamente contestável, a não ser provavelmente com critérios estéticos. Fazer caricaturas num jornal, como as que foram feitas, num momento destes, tem um sentido diferente e acho que não pode ser defendido da mesma maneira.





<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)