08 maio 2006

 

Em estilo de diário mais ou menos íntimo

I – O filme
Tínhamos acabado de ver o filme e, como habitualmente, reunimo-nos numa cervejaria que dá pelo nome de «Galiza» e que não tem nada a ver com a antiga cervejaria da CUF (uma verdadeira instituição, criminosamente derrubada) que existia na Rua Júlio Dinis, então com muito poucos prédios e muitos vestígios de ruralidade convivendo com chaminés industriais e fábricas de uma arquitectura que hoje também recordo com saudade. No lugar delas, nasceram agigantadas construções de muitos andares. Estávamos ainda sob a influência do deslumbramento do filme. Em termos de imagem e de beleza plástica, é um filme soberbo.
Chama-se «O Novo Mundo», de Terrence MalicK. Mas, para além dessa captação epidérmica, pouco havíamos apreendido do seu miolo. Só depois, na animação da conversa e da bebida, é que começámos a esmiuçar – coisa rara hoje em dia, em que um filme se esgota imediatamente com a sua visão, as pessoas começando a sair ainda antes de ter passado o genérico. Depois, não se pensa mais nele; é como se fosse para usar e deitar fora. Curiosamente, este filme parecia ser daqueles em que se torna redundante qualquer comentário. É muito bonito, e pronto. Para um de nós não passava disso mesmo. Um filme bonito com uma espécie de história cor-de-rosa. Porém, mesmo que nos ficássemos por esse aspecto epidérmico (e daí, epidérmico, é como quem diz), eu objectava que nunca tinha visto em cinema cenas de amor tão tocantes (trocas de olhar de cortar a respiração, um roçagar de peles de um envolvimento total, a serena e inocente beleza dos rostos, como se o amor nos fosse dado ali com a densidade inaugural dos primeiros gestos, sem beijos devoradores, sem cenas de cama, e no entanto tão profundo, tão devastador), uma beleza feminina incomum em termos cinematográficos, agarrados que estamos aos estereótipos das «estrelas de cinema». E depois a beleza verdadeiramente genesíaca de todo o filme, restituindo-nos em imagens o sabor antiquíssimo e esquecido do equilíbrio original do homem com a Natureza – o tal paraíso perdido – e num ritmo musical de sinfonia. Essas eram imagens que iriam ficar para sempre na minha memória.
A partir daí, começámos a derivar para outros caminhos que o filme sugeria ou até de que tratava explicitamente: o nascimento do «Novo Mundo», patente no próprio título, a fundação do Estado da Virgínia, as colónias britânicas da América, o encontro de culturas diversas, o extermínio dos indígenas pelos novos colonizadores, a história de amor surgida entre a célebre Pochaontas, aqui representada magnificamente por uma actriz nativa, e o capitão John Smith – uma história de amor com todos os ingredientes, quero eu dizer, obstáculos em princípio insuperáveis, para se tornar numa grande história de amor, segundo os paradigmas clássicos do amor-paixão, mas que tem no filme outras e mais complexas singularidades. Só na aparência essa história de amor seria uma história cor-de-rosa, como um de nós tinha alvitrado. E o filme era mais do que essa história. Para mim era sobretudo uma espécie de nostalgia de uma pureza e de um equilíbrio originais, rompidos pelo surgimento do «Novo Mundo», a civilização, o progresso científico e tecnológico e, nessa medida, uma reflexão sobre tudo isso. As águas a correrem em cachoeira, no final, a correrem interminavelmente, límpidas, tão límpidas, não seriam o contraponto do nosso mundo poluído? Mas talvez isso fosse só uma obsessão minha.
De qualquer forma, quando cheguei a casa, já passava das três da madrugada, tinha em mente uma certa passagem de um livro que vou contar a seguir, depois de dar tempo a um intervalo para o clássico descanso nos braços de Morfeu..





II - O Livro


O livro de que falei, com uma escassa meia centena de páginas, chama-se «O Que É A Cultura», e é de autoria de António José Saraiva, um intelectual que muito admiro sobretudo pela sua enorme capacidade de comunicação, traduzida numa obsessão de tornar simples e desataviadas de erudição as coisas mais complexas e de difícil compreensão. É sem dúvida um autor de cabeceira, ainda que se não concorde com ele.
Li o livro numa tarde de vento, em Julho, numa esplanada da Póvoa de Varzim, mesmo em cima da praia, mas abrigada, e tentando sobrepor o esforço de concentração à diversão que a música de fundo proporcionava.
O livro começa assim: «Cultura opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. Este é o sentido mais extenso de cultura, que coincide com o de civilização.
Em sentido mais restrito, entende-se por cultura todo o conjunto de actividades lúdicas ou utilitárias, intelectuais e afectivas, que caracterizam especificamente um determinado povo.»
E depois, saltando para o final, num capítulo dedicado ao «progresso», que era a tal passagem que eu visava antes de me deitar e que tinha em mente procurar logo que me levantasse, aproveitando um pouco da preguiça domingueira, topei com esta apocalíptica visão:
«O progresso, como é entendido no nosso tempo – a extensão da tecnologia e a obesidade das massas -, tornou-se um genocídio acelerado. A chegada de Colombo às Antilhas deu, em poucos anos, causa à fulminante exterminação e à escravidão de muitos milhões de índios da América. O principal malefício da tecnologia moderna foi romper o equilíbrio ecológico que existiu sobre a Terra e que permitiu às tribos humanas sobreviverem em circunstâncias naturais. Estatisticamente, a vida humana é hoje mais longa, mas o fim voluntário da humanidade tornou-se tecnicamente possível. A proposta de Schopehauer, filósofo alemão do princípio do século XX, que aconselhava as fêmeas humanas a deixarem de parir, está a perfilar-se no horizonte e, pode dizer-se, em vias de execução.
A cultura, que, como vimos, é algo independente da natureza, acaba por virar-se contra ela. (…)»

Não sei se isto tem alguma coisa a ver com o filme. O que sei é que a releitura destas passagens me foi suscitada por ele. Mas talvez tivesse sido uma obsessão sem sentido, dado que são ínvios os caminhos que nos levam a certas associações.
De passagem, e em nova e casual associação de ideias, constato que o governo de Sócrates – o do «choque tecnológico» - não compartilha nada desta visão pessimista (humano-suicidária) de Schopenhauer/Saraiva, uma vez que tenciona penalizar os casais estéreis com uma prestação agravada para a Segurança Social.





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