06 julho 2006

 

Comissões e Escutas


Há duas coisas que não percebo muito bem: primeiro, para que serviria, efectivamente, a comissão anunciada pelo Ministro da Justiça para controlo efectivo “do ponto de vista técnico”, das escutas telefónicas; depois, a reacção epidérmica de muitos comentadores e instituições contra a criação de qualquer entidade do género. A questão é de lógica: se não se percebe para que serve a dita comissão também não há que estar contra ela, sem mais. O que se seria de exigir era uma discussão serena das funções e utilidades de tal entidade e, depois, rejeitava-se ou aplaudia-se.
Vem esta consideração a propósito de notícia que anteontem li no Público PT – Última Hora, da qual se intui que o Governo, por força dos protestos das magistraturas, «deixará cair», na Reforma Processual Penal anunciada, a ideia de criação da dita comissão.
Ora, o pretexto vagamente anunciado para a criação de tal organismo (como disse já, parece que era para controlo efectivo, “do ponto de vista técnico”, das escutas telefónicas) é de molde a suscitar reserva sobre os propósitos governamentais. Mas nunca seria suficiente, a meu ver, para mortificar a discussão. Pelo contrário, deveria ser mote para um debate alargado sobre um fenómeno de que pouco se sabe do ponto de vista empírico. Desde logo, ninguém sabe quanto se escuta em Portugal: já se disse que eram, por ano, 40000 (Jorge Coelho, na SIC), 8000 (Expresso, 10.12.2005), e, mais recentemente, 13000 (Público 8.4.2006 e 10.4.2006). Nem se sabe quantas das escutas requeridas são indeferidas. Nem quanto custam ao erário público. E poderiam indicar-se muitas mais deficiências. Perante o total desconhecimento do fenómeno, não é de admirar que Portugal não figurasse naquele que é, porventura, o mais recente e importante estudo empírico comparado sobre a eficiência das escutas. Foi levado a cabo pelo prestigiado Max Planck Institut para o Direito Estrangeiro e Internacional, sob patrocínio do Ministério da Justiça Federal Alemão, e abrangeu os dados de 12 países europeus (da EU e de fora dela) e 4 países não europeus (E. U. A., Canada, Austrália e Nova Zelândia). Esse estudo está on-line, mas em alemão. Uma apreciação dele, sucinta e muito clara, pode ver-se em The George Washington Law Review, 72 (2004), 1244 e ss.
De entre outros dados muito relevantes, observa-se (p. 1251) que os países com mais escutas são a Itália e a Holanda, respectivamente, com 76 e 62 escutas por 100 000 habitantes; com menos escutas contam-se os E. U. A. (não, não se trata de escutas levadas a efeito pelos serviços secretos sob o indecente Patriot Act) e o Canadá, com respectivamente, 0,5 e 0,4 escutas por 100 000 habitantes. A Alemanha, país que nos é próximo em matéria de regime jurídico-positivo, fica-se pelo meio da tabela, com 15 escutas por 100 000 habitantes.
Afastando, por improvável e Orwelliano, que entre nós se efectuem 40 000 escutas por ano, temos que mesmo fazendo fé, para efeitos de argumentação, nas 8 000 e nas 13 000 escutas anuais, o nosso país estaria muito à frente do triste “camisola amarela” que, no estudo citado, é a Itália. De acordo com contas feitas com o lápis atrás da orelha teríamos que aqui se escutava, por ano, entre 80 e 130 pessoas em 100 000 habitantes (tendo por pressuposto que o país tem cerca de 10 milhões de habitantes). Neste contexto, dizer, como disse Maria José Morgado (último Público cit.), que 13 000 escutas anuais “não é um número preocupante” é que é muito preocupante. Não pretendo fazer comparações com os E. U.A., Canadá e outras nações do mesmo universo jurídico-cultural. Existem aí factores culturais, mas também técnicos (por ex., não é necessária autorização judicial para escuta quando uma das partes escutadas consente na intercepção; tais escutas não entram para a estatística), que explicam a descomunal discrepância entre os números destes países e os demais. Mas já fazia o meu gosto uma aproximação estatística a nações como a Alemanha, que nos inspira em muitas outras coisas, neste particular.
Perguntar-se-á, o que é que isso tem que ver com a dita comissão? Tem muito. Quem define a política criminal (que não são as magistraturas) tem não só o direito mas o dever de estudar um fenómeno que todos sentem que é nefasto mas ninguém sabe bem o que é. E quem não sabe bem para onde vai, é bem possível que nunca lá chegue…Em países como os E. U. A. (§ 2519 U. S. Code), por exemplo, 30 dias após findar o prazo concedido para escuta telefónica, o juiz terá de reportar ao Administrative Office of the United States Courts, de entre outras coisas (algumas das quais admito serem discutíveis) a natureza do crime para que foi ordenada a escuta, o período de intercepção autorizado e as prorrogações, se existirem. Em Janeiro de cada ano, também o Attorney General ou alguém designado por ele, terá igualmente de reportar àquela entidade informações similares, o número de requerimentos indeferidos pelo juiz, mas também outros dados que têm que ver com a eficácia das escutas, nomeadamente a medida em que terão contribuído para detenções ou condenações, etc. Em Abril de cada ano o Director of the Administrative Office of the United States Courts elabora um relatório circunstanciado sobre o número de escutas efectuado e indeferido e analisa os dados coligidos. Esses relatórios são publicados, para todos os poderem ler, como deve ser numa sociedade democrática, e entregues ao Congresso, que com base em conhecimento empírico está mais apetrechado a legislar como for devido.
Se for para isso que serve a tal comissão, eu voto nela.





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