07 dezembro 2005

 

Apontamentos sobre a(s) verdade(s) do judiciário e da política

A recorrente distinção entre responsabilidades judiciariamente reconhecidas (nomeadamente penal e cível) e outras responsabilidades sociais (em particular política) compreende não só a vertente jurídica mas também a factual sobre os juízos quanto aos factos, ao que se passou.
Para a leitura dos efeitos extraprocessuais dos enunciados de facto do procedimentos judiciários, importa destacar que (1) nos mesmos, enquanto actividade social, não é apenas a verdade que está em causa e (2) o princípio da segurança obriga a que exista um momento de encerramento da controvérsia, o caso julgado em que se conheceu o mérito da causa (com afirmação de convicções ou apenas de dúvidas razoáveis) ou mesmo em que este não foi conhecido (por falta de pressupostos processuais, como uma queixa tempestiva, ou por superveniente ocorrência de uma causa extintiva do procedimento, por exemplo por prescrição ou amnistia).
Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado).
A questão que se coloca é saber se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode conviver com outras verdades, nomeadamente afirmadas por outros órgãos do Estado (por exemplo comissões parlamentares de inquérito) ou pela sociedade civil (no quadro de indagações factuais levadas a cabo, por exemplo, no âmbito do jornalismo ou da história).
Os argumentos apresentados no sentido negativo podem ter por referentes interesses públicos ou direitos subjectivos. No plano público era muitas vezes invocada (1) a necessidade de salvaguardar o prestígio do poder judicial e a sua legitimação; e (2) a preservação da independência para evitar influência extra-processual das futuras causas quando o procedimento judicial ainda pode vir a ser accionado ou reactivado. Claramente tem havido uma deflacção da protecção desses interesses públicos por força de uma maior horizontalidade social com reflexos na relação com o Estado e dos crescentes apelos ao escrutínio público dos diferentes poderes estaduais em que se exige a inclusão do judicial (em que diga-se de passagem me parece que no sistema anglo-americano existe uma tradição democrática enformadora muito mais forte do que no continental, mas isso são contas de outro rosário que podem até vir a animar uma discussão no Sine Die).
Quanto aos direitos subjectivos, os limites a supervenientes indagações é muito marcado por perspectivas centradas no direito à paz jurídica (sejam do condenado ou do absolvido, do acusado ou do não acusado), conexas com a protecção da presunção de inocência e seus corolários, em particular o direito a que imputações graves sejam impugnadas no contraditório do processo com o arsenal dos direitos de defesa consagrados na Constituição e na lei, que não têm correspondência com outros quadros de controvérsia e tensão social. Em contraponto, quem defende perspectivas mais restritivas de tais direitos subjectivos, argumenta com o carácter circunscrito do que está em jogo em cada processo (em particular no penal a sujeição a uma pena) e ainda certas aporias geradas por uma limitação mais intensa da liberdade de expressão quanto a factos socialmente mais danosos (porque objecto ou susceptíveis da repressão penal) por comparação com factos menos graves.

A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como sobre a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos (a estória sobre o que X fez e suas presumíveis vítimas está encerrada com a decisão judicial, já a estória sobre o que Y fez tem de ser conhecida para além do que o tribunal disse pois esse é um direito das vítimas).


Como nota final sublinhe-se que neste post apenas se pretendeu reflectir sobre a problemática do espaço aberto (ou fechado) para a controvérsia racional sobre factos objecto de processos judiciários, enquanto problema essencial da esfera pública (sobretudo quando se multiplicam os «discursos de verdade»). Outra coisa são as questões relativas a rejeições socio-políticas de afirmações epistémicas do judiciário ou mesmo de dados recolhidos no quadro de indagações judiciárias («aquilo não pode ser verdade», «aquilo tem de ser verdade», «tem de haver uma verdade», «a verdade é esta», «o que importa é»), independentes de uma discussão vinculada a cânones éticos de comunicação e sobretudo independente de qualquer quadro alternativo ao judiciário de verificação e falsificação, ou seja estritas expressões de um poder e uma autoridade (ou se se quiser de afirmação de uma hierarquia).

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