31 maio 2007
As Novas Bruxas de Salem
Les nouvelles sorcières de Salem: Leçons d`Outreau (2006), de Antoine Garapon e Denis Salas, dois dos mais reputados magistrados franceses, é um pequena e pertinente obra que, traçando um paralelo entre a arrepiante caça às bruxas ocorrida no fim do século XVII, no Massachusetts, e a actual histeria em torno do fenómeno pedófilo, deveria ser lida e objecto de reflexão por muitos dos que se vão pronunciando levianamente sobre certas decisões judiciais. A vozearia em curso a propósito de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que atenuou uma pena aplicada a um autor de um crime sexual praticado sobre um menor é bem demonstrativa, pelo modo desinformado, emotivo, incendiário e sensacionalista como se manifestou (e manifesta) de que já existe entre nós um caldo cultural em ponto de rebuçado para uma radical (e, em todo caso, já com manifestações, aqui e acolá) alteração do paradigma de política criminal, em especial no que respeita as certas franjas do fenómeno criminal, com proeminência, à semelhança do que sucede em outras latitudes, para o abuso sexual de crianças.
Afirmações como “juízes atenuam pedofilia” ou “quando a pedofilia é menos grave”, não traduzem mera ignorância de que a lei fixa limites penais mínimos e máximos para a punição de determinado comportamento e de que a função do juiz é a de, mediando entre a lei os factos da vida, individualizar a pena em função da gravidade daqueles, da personalidade do agente do seu grau de culpa e das exigências de prevenção. Elas traduzem uma atitude de princípio, que é a de que para pedófilos só o máximo previsto na lei (esta já de si branda: venha a castração, a prisão perpétua e, porque não, a pena de morte!) é adequado, de que para estes não vale uma ideia de justiça, que só se pode afirmar na comparação e na relação. Perigosamente, muito perigosamente, para estes não vale o predicado da dignidade humana (sei bem o que me pode valer esta afirmação…), essa ignominiosa invenção kantiana. Tenho por tão acertado o que acabei de dizer que pergunto: e se a decisão em causa – esta ou outra em caso análogo, não importa – fosse a de agravar a sanção? Será que neste caso já estes novos torquemadas em potência deixariam de sublimar o valor da máxima personalização e individualização da operação da medida da pena que é, por rectas contas, punctum crucis de qualquer sistema de justiça penal digno desse nome? A pergunta, como se intui, é de mera retórica. E, também ainda, afirmações como aquela de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”, postulando um juiz asséptico, não carregam um estranho sabor bafiento – mas nos tempos que correm cada vez mais arejado – de retorno a um positivismo legalista em que o juiz se reduz “à boca que reproduz as palavras da lei”?
Pois bem, dizia eu acima que esse estado de coisas, este ambiente, é já propício a outras aventuras político-criminais pouco recomendáveis – e, em todo o caso, estranhas à nossa tradição humanista – que desprezam o legado iluminista (o valor da dignidade humana, da proporcionalidade, só para citar alguns) e enfileiram, de entre o mais, num consequencialismo sem concessões. Penso, claro está, de entre o muito que podia dizer, na redução da margem de apreciação dos juízes, que em alguns países tomou a forma de sentencing guidelines, com cominação de molduras penais muito estreitas para os crimes e, sobre isto, com a vinculação daqueles, na interpretação dos instrumentos normativos, aos policy statements e aos “comentários oficiais” das guidelines (aqui já ecoa nos nossos ouvidos a acima aludida afirmação de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”); a substituição da ideia de individualização, personalização e proporcionalidade na tarefa de determinação da pena, orientada, por sua vez, aquela ideia, por um ideal de reabilitação, pela da neutralização fáctica do delinquente, também aqui numa espécie de regresso ao passado, à solução de pura e simples inocuização de cunho positivista (do positivismo criminológico) – lembremo-nos do que disse ir implícito em afirmações com a atrás transcrita de que os “juízes atenuam pedofilia”; a extraordinária permeabilidade dos legisladores às contingências de certos casos concretos cuja dramaticidade, já de si susceptível de tocar qualquer alma que não seja empedernida, é infinitamente ampliada pelos media, adoptando, dizia, os legisladores, um modo de legiferar errático (veja-se a lei de política criminal, que vai a reboque da espuma de cada dia em matéria de prioridades de investigação) e, não raro, demagógico (é o caso das políticas name and shame em matéria de crimes sexuais sobre menores, que entre nós já conheceram um sucedâneo envergonhado com a publicitação da identidade dos contribuintes devedores); a deriva inquisitória em matéria processual penal, mesmo onde não é sancionada pela lei; etc.
Todas estas são, ainda, para nós, ao menos nas suas formas mais explícitas e mais eriçadas, orientações de politica criminal relativamente remotas. Mas espicaçado por uma comunicação social sensacionalista e acriticamente aberta a tudo o que é novo só porque é novo (e, sobretudo, estrangeiro), o cidadão comum, com queixas legítimas sobre o sistema de justiça, começa a baixar perigosamente as defesas que o mantinham alerta em relação a derivas autoritárias (para dizer o menos). E sendo assim não me admiraria que soluções como as apontadas – ainda que filtradas pela nossa proverbial brandura – estejam mais próximas do que o que supomos. Não sei em que “ismo” elas se podem classificar. E não são taxonómicos os meus cuidados. O que sei é que elas são susceptíveis de minar em muito as conquistas árduas que fazem de Portugal, por enquanto, um Estado de Direito.
Afirmações como “juízes atenuam pedofilia” ou “quando a pedofilia é menos grave”, não traduzem mera ignorância de que a lei fixa limites penais mínimos e máximos para a punição de determinado comportamento e de que a função do juiz é a de, mediando entre a lei os factos da vida, individualizar a pena em função da gravidade daqueles, da personalidade do agente do seu grau de culpa e das exigências de prevenção. Elas traduzem uma atitude de princípio, que é a de que para pedófilos só o máximo previsto na lei (esta já de si branda: venha a castração, a prisão perpétua e, porque não, a pena de morte!) é adequado, de que para estes não vale uma ideia de justiça, que só se pode afirmar na comparação e na relação. Perigosamente, muito perigosamente, para estes não vale o predicado da dignidade humana (sei bem o que me pode valer esta afirmação…), essa ignominiosa invenção kantiana. Tenho por tão acertado o que acabei de dizer que pergunto: e se a decisão em causa – esta ou outra em caso análogo, não importa – fosse a de agravar a sanção? Será que neste caso já estes novos torquemadas em potência deixariam de sublimar o valor da máxima personalização e individualização da operação da medida da pena que é, por rectas contas, punctum crucis de qualquer sistema de justiça penal digno desse nome? A pergunta, como se intui, é de mera retórica. E, também ainda, afirmações como aquela de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”, postulando um juiz asséptico, não carregam um estranho sabor bafiento – mas nos tempos que correm cada vez mais arejado – de retorno a um positivismo legalista em que o juiz se reduz “à boca que reproduz as palavras da lei”?
Pois bem, dizia eu acima que esse estado de coisas, este ambiente, é já propício a outras aventuras político-criminais pouco recomendáveis – e, em todo o caso, estranhas à nossa tradição humanista – que desprezam o legado iluminista (o valor da dignidade humana, da proporcionalidade, só para citar alguns) e enfileiram, de entre o mais, num consequencialismo sem concessões. Penso, claro está, de entre o muito que podia dizer, na redução da margem de apreciação dos juízes, que em alguns países tomou a forma de sentencing guidelines, com cominação de molduras penais muito estreitas para os crimes e, sobre isto, com a vinculação daqueles, na interpretação dos instrumentos normativos, aos policy statements e aos “comentários oficiais” das guidelines (aqui já ecoa nos nossos ouvidos a acima aludida afirmação de que “os juízes deveriam ser mais económicos em opiniões”); a substituição da ideia de individualização, personalização e proporcionalidade na tarefa de determinação da pena, orientada, por sua vez, aquela ideia, por um ideal de reabilitação, pela da neutralização fáctica do delinquente, também aqui numa espécie de regresso ao passado, à solução de pura e simples inocuização de cunho positivista (do positivismo criminológico) – lembremo-nos do que disse ir implícito em afirmações com a atrás transcrita de que os “juízes atenuam pedofilia”; a extraordinária permeabilidade dos legisladores às contingências de certos casos concretos cuja dramaticidade, já de si susceptível de tocar qualquer alma que não seja empedernida, é infinitamente ampliada pelos media, adoptando, dizia, os legisladores, um modo de legiferar errático (veja-se a lei de política criminal, que vai a reboque da espuma de cada dia em matéria de prioridades de investigação) e, não raro, demagógico (é o caso das políticas name and shame em matéria de crimes sexuais sobre menores, que entre nós já conheceram um sucedâneo envergonhado com a publicitação da identidade dos contribuintes devedores); a deriva inquisitória em matéria processual penal, mesmo onde não é sancionada pela lei; etc.
Todas estas são, ainda, para nós, ao menos nas suas formas mais explícitas e mais eriçadas, orientações de politica criminal relativamente remotas. Mas espicaçado por uma comunicação social sensacionalista e acriticamente aberta a tudo o que é novo só porque é novo (e, sobretudo, estrangeiro), o cidadão comum, com queixas legítimas sobre o sistema de justiça, começa a baixar perigosamente as defesas que o mantinham alerta em relação a derivas autoritárias (para dizer o menos). E sendo assim não me admiraria que soluções como as apontadas – ainda que filtradas pela nossa proverbial brandura – estejam mais próximas do que o que supomos. Não sei em que “ismo” elas se podem classificar. E não são taxonómicos os meus cuidados. O que sei é que elas são susceptíveis de minar em muito as conquistas árduas que fazem de Portugal, por enquanto, um Estado de Direito.