30 junho 2007
Cuidado com ele!
(A propósito do tabaco, em tom pessoalíssimo e com bastante erudição)
No dia em que o Parlamento aprovou a lei do tabaco, o jornal “Público” publicou uma crónica soberba de Vasco Pulido Valente, outro dos meus cronistas preferidos. No seu “Às Avessas”, tem crónicas certeiríssimas, cheias de uma ironia mordaz, por vezes corrosiva, e que dão um retrato do Portugal pós-25 de Abril no que tem de mais caricato, mesquinho e provinciano, se bem que, frequentemente, com arrogância, acrimónia, bota-abaixismo e forçando a nota da decadência no mais fiel apego à geração de 70, mas num registo mais conservador e talvez mais nihilista.
A crónica a que me reporto era consagrada, como não podia deixar de ser, aos “benefícios do tabaco”. Li-a no Metro, a caminho do Terreiro do Paço, e foi como um tónico de boa disposição para o dia todo. Não só por esse gosto compartilhado de me sentir às avessas com ele, num momento em que grassa por aí, entre outras formas de fascismo ao nível da vivência quotidiana, o fascismo antitabágico.
Sou um fumador muito moderado e talvez tivesse herdado essa característica do meu pai, que sempre fumou um único cigarro por dia, contrapondo a quem lhe dizia que isso não era vício, que sim, que era, mas a vantagem que tinha sobre os outros fumadores era a de fumar com toda a consciência investida nesse cigarro, concentrando todo o prazer de fumar nesse momento do dia, ao passo que os outros fumadores fumavam inconscientemente, isto é, mecanicamente. Eu também fumo dois ou três cigarros, mas consciente e concentradamente e, por isso, não gosto de ser perturbado nesses momentos. Se, por qualquer razão, tenho de interromper, prefiro deitar o cigarro fora e acender outro mais tarde.
Isto para dizer que sou um fumador praticamente sem ser fumador, o que me permite compreender quer os direitos dos que fumam e pretendem continuar a fumar, quer os direitos dos que não fumam e não querem ser intoxicados pelos cigarros dos outros, muito embora se assista, nesse domínio, a uma intolerância e a uma preocupação com a saúde que já são do âmbito da obsessão irracional. É uma espécie de esquizofrenia sanitária.
Voltando à crónica de Vasco Pulido Valente, ele começa por dizer que «viver sem fumar é como escrever sem pontuação». Depois, vai por aí abaixo e desenrola toda uma série de benefícios de fumar, pontuados por um ritmo que vai desde o levantar ao deitar, passando pelo ritual do almoço e do jantar, pelos momentos de lazer e pelos momentos de trabalho, pelo início de uma tarefa e pelo fim de uma tarefa, pelo arranque para começar e pelo júbilo de ter chegado ao fim, pelas dificuldades que embotam o pensamento e pelas pausas para pensar e voltar atrás («mas principalmente fumar serve para pensar», escreve; já Virgílio Ferreira, num dos volumes da sua “Conta-Corrente” dizia que «suspensão de fumar é suspensão de pensar»), confidenciando, por fim, que o cigarro «é um fiel amigo» com quem se pode conversar e que «substitui a humanidade» (já António Nobre gostava de falar a sós com o seu cachimbo e até o queria levar para a cova, lembram-se? – “Ah! quando for do meu enterro/ Quando partir gelado, enfim,/Nalgum caixão de mogno e ferro/ Quero que vás ao pé de mim”.) Em suma, para Vasco Pulido Valente «o cigarro concentra e acalma. Restabelece, por assim dizer, a normalidade». Torga tem um conto em “Pedras Lavradas”, justamente intitulado «O cigarro», onde, para além de estar presente esse tema da normalização/transgressão/pacificação, foca poeticamente o tema da fraternidade: dois trabalhadores rurais, um dos quais, desesperado, crava um cigarro ao outro, acaba por obtê-lo e diz: «Não sabe o favor que me fez! Se me nega o cigarro, éramos dois desgraçados!» Mas, em vez da desgraça, o que aconteceu foi isto: (…) «eram agora dois homens pacificados, bons, naturais e fraternos como a paisagem. E nessa mansidão se separaram».
Pois para quê isto tudo, todas estas citações, que provavelmente qualquer censor fascista, do tipo daqueles que foram ao retrato de André Malraux, esse perene fumador, e o arrancaram da boca, está a preparar-se para, afiando a velha tesoura dos coronéis, cortá-las nas próximas edições, que aparecerão já expurgadas do hediondo vício? Já não cortaram o “suave” ao “Português”, que agora é só “Português” para quem o vê empacotado e “suave” para quem o sente? Para quê tudo isto? Para dizer que é preciso cuidado com o tabaco. Ele não apresenta só malefícios, e, ao fim e ao cabo, a humanidade sempre precisou de uma qualquer droga. Uma das maiores drogas dos tempos actuais é a televisão, que também gera dependência, apatia e maus hábitos, senão mesmo tendências criminosas. Se os fumadores são doentes e devem ser tratados como doentes, também os que querem forçar a cura não são bons da cabeça, nem gente muito normal. Não se deve fumar à toa, de forma a prejudicar terceiros, segundo hábitos adquiridos com demasiada liberalidade, mas também não se devem radicalizar as medidas proibicionistas, quer haja quer não haja justificação razoável, e muito menos remeter os fumadores para campos de concentração, onde, na exiguidade do espaço, darão uma trégua ansiosa ao vício, como pretendem muitos imãs do fundamentalismo antitabágico.
No dia em que o Parlamento aprovou a lei do tabaco, o jornal “Público” publicou uma crónica soberba de Vasco Pulido Valente, outro dos meus cronistas preferidos. No seu “Às Avessas”, tem crónicas certeiríssimas, cheias de uma ironia mordaz, por vezes corrosiva, e que dão um retrato do Portugal pós-25 de Abril no que tem de mais caricato, mesquinho e provinciano, se bem que, frequentemente, com arrogância, acrimónia, bota-abaixismo e forçando a nota da decadência no mais fiel apego à geração de 70, mas num registo mais conservador e talvez mais nihilista.
A crónica a que me reporto era consagrada, como não podia deixar de ser, aos “benefícios do tabaco”. Li-a no Metro, a caminho do Terreiro do Paço, e foi como um tónico de boa disposição para o dia todo. Não só por esse gosto compartilhado de me sentir às avessas com ele, num momento em que grassa por aí, entre outras formas de fascismo ao nível da vivência quotidiana, o fascismo antitabágico.
Sou um fumador muito moderado e talvez tivesse herdado essa característica do meu pai, que sempre fumou um único cigarro por dia, contrapondo a quem lhe dizia que isso não era vício, que sim, que era, mas a vantagem que tinha sobre os outros fumadores era a de fumar com toda a consciência investida nesse cigarro, concentrando todo o prazer de fumar nesse momento do dia, ao passo que os outros fumadores fumavam inconscientemente, isto é, mecanicamente. Eu também fumo dois ou três cigarros, mas consciente e concentradamente e, por isso, não gosto de ser perturbado nesses momentos. Se, por qualquer razão, tenho de interromper, prefiro deitar o cigarro fora e acender outro mais tarde.
Isto para dizer que sou um fumador praticamente sem ser fumador, o que me permite compreender quer os direitos dos que fumam e pretendem continuar a fumar, quer os direitos dos que não fumam e não querem ser intoxicados pelos cigarros dos outros, muito embora se assista, nesse domínio, a uma intolerância e a uma preocupação com a saúde que já são do âmbito da obsessão irracional. É uma espécie de esquizofrenia sanitária.
Voltando à crónica de Vasco Pulido Valente, ele começa por dizer que «viver sem fumar é como escrever sem pontuação». Depois, vai por aí abaixo e desenrola toda uma série de benefícios de fumar, pontuados por um ritmo que vai desde o levantar ao deitar, passando pelo ritual do almoço e do jantar, pelos momentos de lazer e pelos momentos de trabalho, pelo início de uma tarefa e pelo fim de uma tarefa, pelo arranque para começar e pelo júbilo de ter chegado ao fim, pelas dificuldades que embotam o pensamento e pelas pausas para pensar e voltar atrás («mas principalmente fumar serve para pensar», escreve; já Virgílio Ferreira, num dos volumes da sua “Conta-Corrente” dizia que «suspensão de fumar é suspensão de pensar»), confidenciando, por fim, que o cigarro «é um fiel amigo» com quem se pode conversar e que «substitui a humanidade» (já António Nobre gostava de falar a sós com o seu cachimbo e até o queria levar para a cova, lembram-se? – “Ah! quando for do meu enterro/ Quando partir gelado, enfim,/Nalgum caixão de mogno e ferro/ Quero que vás ao pé de mim”.) Em suma, para Vasco Pulido Valente «o cigarro concentra e acalma. Restabelece, por assim dizer, a normalidade». Torga tem um conto em “Pedras Lavradas”, justamente intitulado «O cigarro», onde, para além de estar presente esse tema da normalização/transgressão/pacificação, foca poeticamente o tema da fraternidade: dois trabalhadores rurais, um dos quais, desesperado, crava um cigarro ao outro, acaba por obtê-lo e diz: «Não sabe o favor que me fez! Se me nega o cigarro, éramos dois desgraçados!» Mas, em vez da desgraça, o que aconteceu foi isto: (…) «eram agora dois homens pacificados, bons, naturais e fraternos como a paisagem. E nessa mansidão se separaram».
Pois para quê isto tudo, todas estas citações, que provavelmente qualquer censor fascista, do tipo daqueles que foram ao retrato de André Malraux, esse perene fumador, e o arrancaram da boca, está a preparar-se para, afiando a velha tesoura dos coronéis, cortá-las nas próximas edições, que aparecerão já expurgadas do hediondo vício? Já não cortaram o “suave” ao “Português”, que agora é só “Português” para quem o vê empacotado e “suave” para quem o sente? Para quê tudo isto? Para dizer que é preciso cuidado com o tabaco. Ele não apresenta só malefícios, e, ao fim e ao cabo, a humanidade sempre precisou de uma qualquer droga. Uma das maiores drogas dos tempos actuais é a televisão, que também gera dependência, apatia e maus hábitos, senão mesmo tendências criminosas. Se os fumadores são doentes e devem ser tratados como doentes, também os que querem forçar a cura não são bons da cabeça, nem gente muito normal. Não se deve fumar à toa, de forma a prejudicar terceiros, segundo hábitos adquiridos com demasiada liberalidade, mas também não se devem radicalizar as medidas proibicionistas, quer haja quer não haja justificação razoável, e muito menos remeter os fumadores para campos de concentração, onde, na exiguidade do espaço, darão uma trégua ansiosa ao vício, como pretendem muitos imãs do fundamentalismo antitabágico.