14 outubro 2007
Apocalipse
Eis um belo texto apocalíptico, que me dei ao trabalho e ao prazer de traduzir. Interpretem-no como quiserem: como um texto literário apenas, aliás de grande pujança; como um texto moral onde, porventura, se notará uma certa concepção do homem, da natureza e da civilização que será tributária de algum romantismo; como uma fabulosa diatribe onde haverá traços de uma actualidade pungente. O texto é, evidentemente, escrito por um louco.
«Quando acabará de uma vez por todas esta sociedade degenerada de tantos excessos, excessos da mente, do corpo e da alma?
Então, surgirá a alegria na terra, quando esse vampiro mentiroso e hipócrita, que se chama civilização, se extinguir; o homem abandonará o manto real, o ceptro, os diamantes, o palácio que se desmorona, a cidade que cai, para se ir juntar à égua e à loba.
Depois de passar a vida nos palácios e a gastar os pés nas calçadas das grandes cidades, o homem irá morrer nos bosques.
A terra estará seca por causa dos incêndios que a queimaram, e cheia do pó dos combates; o sopro da desolação atravessá-la-á, assim como aos homens, e ela não dará mais do que frutos amargos e rosas de espinhos, como as plantas açoitadas pelos ventos que morrem antes de florirem.
Se tudo tem que terminar, a terra há-de gastar-se à força de ser maltratada, pois o universo há-de estar já farto deste grão de pó que faz tanto ruído e altera a majestade do nada. O ouro acabará por se esgotar à força de passar por muitas mãos e corromper; estes eflúvios de sangue hão-de desaparecer, o palácio há-de vir abaixo sob o peso das riquezas que contém, a orgia há-de ter um fim e nós despertaremos.
Então soará uma imensa gargalhada de desespero, quando os homens depararem com o vazio, quando se tiver que abandonar a vida pela morte, pela morte que come, que sempre tem fome. E todo o mundo rugirá para logo se precipitar no vazio, o homem virtuoso maldirá da sua virtude e o vício romperá em aplausos.
Alguns homens errando pela terra árida chamarão uns pelos outros; irão uns de encontro aos outros, e retrocederão espantados, assustados de si mesmos, e morrerão. Que será do homem, então, sendo como é mais feroz do que as outras feras, mais vil que os répteis? Adeus para sempre, carros resplandecentes, marchas militares e pessoas de renome; adeus ao mundo, a estes palácios, a estes mausoléus, aos prazeres do crime e aos gozos da corrupção! A pedra cairá abruptamente, esmagada pelo seu próprio peso, e a erva crescerá por cima. Os palácios, os templos, as pirâmides, as colunas, o mausoléu do rei, o ataúde do pobre, a carcaça do cão, tudo isso ficará ao mesmo nível, sob a terra.
Então o mar sem diques espraiar-se-á pelas margens em repouso e as suas águas banharão a cinza ainda fumegante das cidades; as árvores crescerão e reverdecerão, sem uma mão que as tolha e as abata; os rios correrão pelas pradarias salpicadas de flores, a natureza será livre, sem o homem para sufocá-la, e essa raça ficará para sempre extinta, pois estava inquinada desde a raiz.»
Gustave Flaubert, Mémoires d’un fou
«Quando acabará de uma vez por todas esta sociedade degenerada de tantos excessos, excessos da mente, do corpo e da alma?
Então, surgirá a alegria na terra, quando esse vampiro mentiroso e hipócrita, que se chama civilização, se extinguir; o homem abandonará o manto real, o ceptro, os diamantes, o palácio que se desmorona, a cidade que cai, para se ir juntar à égua e à loba.
Depois de passar a vida nos palácios e a gastar os pés nas calçadas das grandes cidades, o homem irá morrer nos bosques.
A terra estará seca por causa dos incêndios que a queimaram, e cheia do pó dos combates; o sopro da desolação atravessá-la-á, assim como aos homens, e ela não dará mais do que frutos amargos e rosas de espinhos, como as plantas açoitadas pelos ventos que morrem antes de florirem.
Se tudo tem que terminar, a terra há-de gastar-se à força de ser maltratada, pois o universo há-de estar já farto deste grão de pó que faz tanto ruído e altera a majestade do nada. O ouro acabará por se esgotar à força de passar por muitas mãos e corromper; estes eflúvios de sangue hão-de desaparecer, o palácio há-de vir abaixo sob o peso das riquezas que contém, a orgia há-de ter um fim e nós despertaremos.
Então soará uma imensa gargalhada de desespero, quando os homens depararem com o vazio, quando se tiver que abandonar a vida pela morte, pela morte que come, que sempre tem fome. E todo o mundo rugirá para logo se precipitar no vazio, o homem virtuoso maldirá da sua virtude e o vício romperá em aplausos.
Alguns homens errando pela terra árida chamarão uns pelos outros; irão uns de encontro aos outros, e retrocederão espantados, assustados de si mesmos, e morrerão. Que será do homem, então, sendo como é mais feroz do que as outras feras, mais vil que os répteis? Adeus para sempre, carros resplandecentes, marchas militares e pessoas de renome; adeus ao mundo, a estes palácios, a estes mausoléus, aos prazeres do crime e aos gozos da corrupção! A pedra cairá abruptamente, esmagada pelo seu próprio peso, e a erva crescerá por cima. Os palácios, os templos, as pirâmides, as colunas, o mausoléu do rei, o ataúde do pobre, a carcaça do cão, tudo isso ficará ao mesmo nível, sob a terra.
Então o mar sem diques espraiar-se-á pelas margens em repouso e as suas águas banharão a cinza ainda fumegante das cidades; as árvores crescerão e reverdecerão, sem uma mão que as tolha e as abata; os rios correrão pelas pradarias salpicadas de flores, a natureza será livre, sem o homem para sufocá-la, e essa raça ficará para sempre extinta, pois estava inquinada desde a raiz.»
Gustave Flaubert, Mémoires d’un fou