28 fevereiro 2009

 

A propósito da «deriva censória»

A questão da deriva censória que estaria em curso em Portugal por causa do ocorrido em Torres Vedras com a proibição pelo Ministério Público, após queixa de um particular, da sátira carnavalesca ao computador “Magalhães”, girando em torno de mulheres nuas, e da apreensão pela PSP, em Braga, também no seguimento de denúncia particular, dos vários exemplares de um livro, expostos numa feira do livro, a pretexto da imagem que ostentavam na capa, tem suscitado unânimes e indignados protestos, num consenso alargadíssimo que roça praticamente o uniformismo.
Não é que eu aprove as acções levadas a cabo pelas autoridades, mas desconfio de tanto unanimismo e de tanto pensamento “politicamente correcto”, como agora se diz.
Em relação ao caso de Torres Vedras, configurando-se aí um atentado à liberdade de expressão, o caso foi reparado a tempo por meio de um recurso da polémica decisão. É caso para dizer que as instituições funcionaram.
No que respeita ao caso de Braga,«a idolátrica», o que é curioso constatar é como, de repente, em Portugal, há tanta gente culta, profundamente conhecedora da célebre pintura de Gustave Courbet, A Origem do Mundo, que retrata com marcado realismo uma mulher nua, deitada, com a vulva e o “monte de Vénus” bem em evidência no meio das pernas abertas e que ilustrava a capa do referido livro, intitulado Pornocracia; como é que, de repente, tanta gente bem formada cultural e esteticamente, encara com uma notável naturalidade a exposição em público da reprodução dessa pintura na capa dum livro e como é que essa gente esclarecida, desinibida, distingue com tanta mestria o que é pornográfico do que não é pornográfico e reconhece com tanta finura a marca estética duma representação artística, contrapondo-a à grosseira representação pornográfica.
Por mim, confesso que tenho, por vezes, bastante dificuldade em saber se um dado objecto ou representação é pornográfico ou se é do domínio do erótico. Tenho lido centos de páginas sobre o assunto e acho que a distinção é complexa, sendo frequentemente muito ténues as fronteiras que separam a pornografia do erotismo. Será que o “artístico” ou o “estético” são critérios decisivos, como parece decorrer de muitos que falaram sobre o assunto? Roland Barthes, numa célebre definição, considerou o erótico como «o que está entre duas margens» Escreve ele: «O lugar mais erótico de um corpo não é o ponto onde o vestuário se entreabre? (…) é a intermitência, como bem o disse a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (…) entre duas margens (…); é essa própria cintilação que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento» (O Prazer do Texto). Por conseguinte, o erotismo seria mais da ordem do alusivo, do sugestivo, ao passo que a pornografia seria a obsessão de pôr tudo ao léu, de chegar depressa ao fim «(…) toda a excitação se refugia na esperança de ver o sexo (sonho do colegial) ou de conhecer o fim da história (satisfação romanesca)» (idem). «Ver tudo: mesmo se ver é uma tristeza» (Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, A Nova Desordem Amorosa). Como nos filmes porno, que os AA. analisam agudamente na passagem citada.
Deste ponto de vista, o que caracteriza, de facto, a sociedade actual é a pornografia generalizada É uma sociedade que quer ver tudo, sem resíduos, que tem pressa de chegar ao fim, sem recurso ao imaginário, saltando etapas e fazendo da pobreza desse strip-tease um espectáculo e uma reivindicação democrática.
Eis porque a actuação da polícia, em Braga, é um anacronismo. Corrigido, no entanto, logo a seguir, embora com uma desculpa esfarrapada. Mas o que é certo é que não há motivo para congregar os ministérios da Justiça e do Interior, como alguns clamam. Que exagero!





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