19 fevereiro 2010

 

O que é um atentado contra o Estado de Direito?

Muito se tem falado neste tipo de atentados nos últimos dias. Mas pouco ou nada se tem dito sobre o que, no plano estritamente penal, tal significa.
Existem evidentemente outras dimensões de análise, a política, a ética, etc.
Mas quando se fala no "crime de atentado contra o estado de Direito" é preciso saber do que se fala (e geralmente não se sabe...). É disso que trata o texto que segue, da autoria do António Henriques Gaspar.





CRIMES DE RESPONSABILIDADE DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS

LEI Nº 34/87, DE 16 DE JULHO
O ARTIGO 9º: «ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO»




1. A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, define os crimes especiais de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, estabelecendo alguns princípios específicos e tipificando os actos que constituem, em especial, crimes de responsabilidade.
A Lei nº 34/87, de 16 de Julho, constitui o resultado do processo legislativo parlamentar iniciado com os Projectos de Lei nº 377/IV (PS) e nº 387/IV (PRD), como votação final em 29 de Abril de 1987 (DAR, I série, nº 73, de 29 de Abril de 1987).
As Introduções explicativas dos Projectos, e a discussão na generalidade, revelam a preocupação de cumprir (reconhecendo os deputados que tardiamente) a injunção constitucional do artigo 120º, 2 da CRP – actualmente artigo 117º, 2 – no que respeitava à responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos por actos e omissões praticados no exercício das funções. A desadequação e as fortes dúvidas sobre a validade de vigência da Lei nº 266, de 27 de Julho de 1914, impunham a intervenção legislativa da competência absoluta do Parlamento.

2. Os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, definidos nos artigos 7º a 27º do diploma, podem agregar-se por categorias delimitadas pelos interesses e valores específicos que protegem e pela consequente definição do bem jurídico.
O artigo 7º («Traição à Pátria») protege os valores da integridade territorial do País e da independência da Nação, prevenindo a separação, por acto não violento, de territórios da Mão Pátria ou a submissão a soberania estrangeira de todo ou parte do território nacional, ou ofender ou pôr em perigo a independência da País. È um crime de traição à Pátria, por meio de acção não violenta, isto é, como resultado de um acto político, em de que a moldura penal prevista traduz a gravidade.
Os artigos 8º, 9º, 10º e 15º constituem crimes contra o Estado de direito, como modelo constitucional de realização de valores, direitos e garantias fundamentais, ou contra a perturbação de funcionamento de órgãos constitucionais. As molduras penais previstas permitem a indicação sobre a relevância e a identidade material e a intensidade dos valores protegidos nas incriminações. A medida das penas transmite indicações sobre a identidade e a homogeneidade dos valores protegidos nos artigos 9º, 10º e 15º e das acções que os afectam.
Os artigos 11º e 13 constituem crimes puros de exercício de funções, protegendo a regularidade funcional do respectivo exercício – são crimes também de direito penal comum relativo a funcionários.
O artigo 14º constitui um crime financeiro, na dimensão orçamental, protegendo a integridade e o rigor na execução orçamental.
Os artigos 16º, 17º e 18º («corrupção»), 20º e 22º («peculato») e 13º («participação económica em negócio») constituem crimes comuns de funcionários, e por isso sem especial significado típico ou valorativo enquanto crimes de responsabilidade.
Os artigos 24º a 27º constituem também crimes comuns, sem particularidades que justificassem a previsão autónoma e específica como crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos.

3. O artigo 9º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, prevê o crime de «Atentado contra o Estado de direito»: «O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido».
O crime previsto nesta disposição, considerados os seus elementos constitutivos, deve ser qualificado como crime próprio, puro, e tanto pela previsão específica da lei, como pela centralidade e essencialidade da qualidade do agente, é um crime de “mão-própria”, em que concorrem elementos que parecem afastar a comparticipação de extraneus – artigo 28º, nº 2, parte final, do Código Penal.
A descrição típica do crime é relativamente complexa, pela utilização de várias noções ou conceitos materiais e valorativos de perímetro indeterminado ou relativamente elástico.
A complexidade é, também, muito induzida pela dimensão (ou natureza) simbólica – ou mesmo hiper-simbólica – da incriminação.
A dimensão simbólica está bem presente em espaços da discussão parlamentar do processo legislativo (DAR, I série, nº 70, de 24 de Abril de 1987), com afirmações de manifesta carga proclamatória – o que, por regra, traduz um pacto genético de ineficácia, ou de prognose de inexistência ou mesmo de impossibilidade de ocorrência de factos, situações ou motivos que pudessem determinar a aplicação.
Por esta razão, impõe-se também um especial cuidado na interpretação.
O crime previsto no artigo 9º (como outros de carga típica, valorativa e simbólica semelhante) existe, no entanto, e apresenta, de qualquer modo, um conjunto de elementos que carecem de interpretação, como pressuposto da delimitação e integração dos elementos do tipo e, por aqui, das circunstâncias de possível aplicabilidade ou aplicação.
A lei penal tem de ser certa e determinada. O princípio da legalidade constitui, com efeito, uma garantia fundamental com assento constitucional e consagração nos instrumentos internacionais de protecção de direitos fundamentais – v. g., no artigo 7º da CEDH.
As exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da legalidade devem encontrar tradução e fazem-se sentir de forma mais intensa na definição do tipo de ilícito.
Deste modo, na interpretação da lei penal, e especialmente da determinação dos elementos do tipo de ilícito, as palavras utilizadas, o teor literal e os significados comuns que comportam, constituem a referência essencial. Depois, dentro do quadro de significações possíveis das palavras da lei, intervirão considerações teleologicamente comandadas e funcionalmente justificadas.
A conjugação das palavras, do seu âmbito de significados comuns e da razão teleológica permitirá encontrar um sentido vinculado a razões e a fins, especialmente quando a utilização de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais ou de «fórmulas gerais de valor» introduza alguma dificuldade na determinabilidade objectiva das condutas proibidas.
A função de garantia da lei penal não suporta interpretações que não sejam estritas.
Deste modo, na interpretação do tipo, o primeiro elemento de referência – para além da especificidade do agente – será o esclarecimento sobre o ambiente e o contexto da acção, simultaneamente apresentados como elementos da tipicidade e da ilicitude.
Os actos que o tipo do artigo 9º prevê têm de ser praticados pelo titular de cargo político no exercício das funções ou por causa ou no contexto do exercício das respectivas funções; constitui um crime de exercício e não simplesmente um crime de qualidade.
E no exercício das respectivas funções, «com flagrante desvio ou abuso das suas funções, ou com grave violação dos inerentes deveres». No exercício das funções significa acção integrada por actos ou omissões praticados no exercício do complexo das competências ou poderes políticos próprios do titular de cargo político que possa estar em causa.
Os actos que integram a acção típica têm de ser praticados com «flagrante desvio ou abuso de funções». Que significa e tem de revelar um afastamento manifesto das finalidades a que está adstrita a atribuição de competências, com desrespeito intolerável pelos deveres que as funções impõem e a que obrigam.
Para além da natureza e da qualificação da actuação, tem de concorrer uma intenção específica para a produção de um efeito – tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República e em instrumentos internacionais sobre direitos e garantias fundamentais.
A formulação permite, assim, revelar a construção do tipo como crime de empreendimento, em que a tentativa integra já, por si, o crime acabado, considerando-se a acabamento apenas como critério de delimitação das molduras penais previstas.
A descrição, a natureza e o conteúdo (e a intenção específica) e o resultado da acção, ou visado com a acção, é determinante para a leitura e interpretação do tipo e constitui mesmo o elemento central para a compreensão do crime.
A destruição, alteração ou subversão do estado de direito constitucionalmente estabelecido – destruição, alteração ou subversão dos direitos, liberdades e garantias constitucionais que dão substância, consistência e dimensão jurídica e política ao Estado de direito como modelo constitucional de organização de uma sociedade política – constituem fórmulas para designação ou identificação de formas ou modos de afectação radical e na substância mesma, impedindo a subsistência do estado de direito como modelo de referência constitucional.
Destruir, alterar ou subverter constituem fórmulas de linguagem que significam e correspondem a conteúdos materiais de ruptura sistémica.
As palavras têm um significado e um conteúdo que define e qualifica uma determinada realidade.
A destruição significa eliminar, danificar de modo irreversível, desfazer, aniquilar.
A alteração, em significado com idêntica carga valorativa, consiste em modificar, degenerar ou corromper.
A subversão é destruição, perturbação, perversão.
Todos são termos e fórmulas verbais com uma específica carga semântica, que reverte sempre para uma modificação essencial, determinante, ou para a eliminação ou aniquilamento de uma realidade antes consistente; a dimensão semântica aponta, como se salientou, para expressões com significado material de ruptura.
Deste modo, na estrutura típica, o crime de «atentado ao Estado de direito» tem de consistir numa ruptura, no aniquilamento, ou na supressão geral e sistémica, se não total pelo menos de modo substancial, dos elementos constitucionais da noção – soberania popular, pluralismo de expressão e organização política democrática, separação e interdependência de poderes e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais – artigo 2º da Constituição.
Direitos, liberdades e garantias fundamentais que a Constituição enuncia no Título II, sejam pessoais, sejam de participação política ou dos trabalhadores.
A alteração, destruição ou aniquilamento é, pois, sistémica, de supressão efectiva e geral ou substancialmente considerável para constituir uma alteração de modelo constitucional nos modos, nos termos e nas condições gerais de exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
O resultado tem de ser de dimensão modelar, de desconfiguração, do nível da radicalidade que altere a forma de organização, o conteúdo e a expressão externa do Estado de direito.
Em suma, o crime de «atentado ao Estado de direito», previsto no artigo 9º da Lei nº 43/87, de 16 de Julho, tem de consistir em acções ou num empreendimento que tenham como resultado uma modificação de tal nível, generalidade e intensidade, que se apresente como um verdadeiro «golpe de estado» por meios não violentos.

5. A razão dos valores constitucionais que carecem de tutela penal – a proporcionalidade dos crimes e das penas como critério principal na axiologia da Constituição - e a eadem ratio de proporção e razoabilidade comparada intra-sistemática entre os crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º da Lei nº 34/87 apontam no mesmo sentido
Existe, ou tem de existir, com efeito, uma proporção interna, medida pelas molduras penais como índice material da gravidade dos crimes previstos. A medida das penas igual ou diversa aponta para uma semelhança ou diferenciação das valorações materiais, logo no plano assumido pelo legislador.
A identidade de molduras penais dos crimes de responsabilidade previstos nos artigos 9º, 10º e 15º não pode deixar de valer como significado de aproximação ou identidade de valorações, que tem necessário reflexo na determinação das condutas que podem estar, razoável e teleologicamente, contidas nos significados comuns das noções que utilizam.
O artigo 10º prevê o impedimento ou constrangimento, ainda que por meio não violento, do livre exercício das funções de órgão de soberania.
O artigo 15º, por seu lado, prevê a suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias não susceptíveis de suspensão, ou sem recurso legítimo aos estados se sítio ou de emergência, ou restrições ao exercício dos direitos, liberdades e garantias com violação grave das regras de execução do estado de excepção declarado.
O impedimento ou constrangimento do livre exercício das funções dos órgãos de soberania afecta, na própria substância, os fundamentos institucionais do Estado de direito, e a suspensão do exercício dos direitos, liberdades e garantias, sem recurso aos estados de emergência, está prevista no tipo respectivo como acção com efeitos de generalidade, aplicáveis em geral, e não especificamente para casos individualizados ou pontuais, sem significado colectivo e sistémico.
A interpretação dos elementos do tipo do artigo 9º, mediada também pela razão das correlações valorativas de homogeneidade material, não pode deixar de apontar, como se salientou, para uma alteração, desfiguração, destruição ou impedimento de exercício, em geral, das liberdades constitucionais, de modo que se verifique uma alteração na substância do Estado de direito.


(António Henriques Gaspar)





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