02 fevereiro 2010
A pandemia do século
Ou de como se mostra ser o nosso reino um belo exemplo de moderação, poupança e inteligência no concerto das Nações.
A respeito da pandemia gripal que foi anunciada com contornos de catástrofe a nível mundial, quero salientar a forma altamente digna e responsável como se portou o nosso pequeno, mas sempre exemplar reino. A referida pandemia, que foi primeiramente designada como “gripe suína” e depois, sob os altos critérios da ciência, “gripe A H1N1”, tornando-a mais digna de assentar na nobre carcaça humana, poderia dizimar, segundo as mais fiáveis previsões cientificas, milhões de seres humanos. O nosso reino não escaparia a ser assolado pelo terrível flagelo, pois nenhum país a ele se subtrairia, tanto mais que se tratava de uma pandemia a correr mundo a altíssima velocidade. Rapidamente o grau de perigo foi acentuado e dado o alerta vermelho pelas previdentes e mais do que prudentes autoridades sanitárias das organizações internacionais. Compreende-se: não vivemos na escuridão da Idade Média, em que as pestes alastravam com rapidez e ceifavam milhares de vidas, enquanto os sinos das igrejas tocavam a rebate. Hoje, mal desponta um foco infeccioso de qualquer natureza, difunde-se logo, urbi et orbi, por meios de comunicação poderosos, a iminente investida do morbo e tenta-se aniquilá-lo antes que ele leve a cabo a sua obra de devastação.
Assim aconteceu desta vez. Sem armas eficazes para repelir o mal, cientistas de craveira mundial rapidamente inventaram uma arma: uma agulha, uma seringa e um líquido para ser injectado no corpo humano e torná-lo imune. Chama-se a isso uma vacina. Tal a arma.
Inventada ela, tratou-se de propagandear a sua difusão, alertando-se sempre para os graves perigos mortais do vírus e para as muitas e muitas mortes que ocorreriam, caso a dita vacina não fosse aplicada em massa. As empresas farmacêuticas começaram a exportar, em doses maciças, a dita arma. Diariamente, acorriam aos diversos países milhares e milhares de agulhas e seringas – um autêntico arsenal de guerra para fazer face ao vírus destruidor. Em alguns deles, foi mesmo obrigatório submeter-se à picadela, sob pena de pesadas multas.
Ora acontece que o vírus se exilou e não apareceu com o ímpeto mortífero que tinha sido anunciado. Quando era suposto estar a pandemia a alastrar-se rápida e assustadoramente, chegou-se à conclusão de que o vírus tinha feito uma negaça e o número de doentes era ainda menos do que em anos de vírus normal. Assim, começou a zoar que tudo isto tinha sido uma gigantesca fraude das indústrias farmacêuticas, na qual tinham colaborado as tais instituições internacionais, o que até vinha a calhar para essas empresas encherem os bolsos, atendendo à grave crise que assola o mundo.
Ora, no meu modesto entender, não foi nada disso. O que se passou foi que o vírus arreganhou mesmo os dentes e estava preparado para fazer uma hecatombe. Todavia, fez-se tanto alarde contra o vírus e pôs-se em acção tamanho arsenal bélico para o debelar, que aquele deu-se por vencido e deu em retirada do campo de batalha. Assim se ganhou a guerra com uma monumental acção psicológica e uma presença ostensiva do armamento fabricado. Mas, para tal resultado, foi necessário produzir e exibir esse armamento, ainda que não utilizado na sua maior parte. Com isso o vírus assustou-se e as empresas tiveram, sem dúvida, para além de grandes e merecidos lucros, um papel altamente meritório, que é de toda a conveniência não depreciar. Igualmente, as entidades sanitárias tiveram um papel de largo alcance ao porem a população em situação de alerta máximo, porque este é igualmente muito útil em circunstâncias destas. O alerta máximo é uma espécie de prevenção superlativa e se um homem prevenido vale por dois, imagine-se quanto não representarão milhares de homens e mulheres em alerta máximo.
O nosso reino teve nisto uma actuação exemplar, como sempre tem tido ao longo de um já velho passado. Com efeito, as autoridades sanitárias assustaram a população em termos comedidos. Como afirmou um dos responsáveis nesta matéria, nunca se disse que ia haver uma mortandade. Sabendo que o nosso povo é bastante esperto e dotado de bravura, mas ao mesmo tempo um bocadinho relapso, alguns governantes deixaram-se exibir de braço ao léu, com uma enfermeira sorridente e obsequiosa a espetar-lhes uma comprida agulha. Tanto bastou para que uma escassa percentagem da população se fosse vacinar - o número de cidadãos suficiente para o vírus, temeroso da nossa proverbial resistência, se pôr logo em debandada, contentando-se com escassas dezenas de vítimas.
Deste modo, não foi preciso utilizar uma grande quantidade de vacinas, nem coagir os cidadãos a tomá-la. E muito mais do que isso: nem sequer foi necessário aplicar a 2.ª dose prevista. Por cima de tudo, como as vacinas encomendadas foram em quantidade muito inferior à de outros países, pois se o nosso povo é esperto os governantes também o são, quando toca a poupar esforços e dinheiro, não houve sobras nem gastos supérfluos, como se verificou na maior parte dos países que nos rodeiam. Assim demos um grande exemplo de como administrar sabiamente os fracos recursos que temos e debelar com comedimento inteligente os flagelos que nos assolam.
Jonathan Swift (1665 – 1745)
A respeito da pandemia gripal que foi anunciada com contornos de catástrofe a nível mundial, quero salientar a forma altamente digna e responsável como se portou o nosso pequeno, mas sempre exemplar reino. A referida pandemia, que foi primeiramente designada como “gripe suína” e depois, sob os altos critérios da ciência, “gripe A H1N1”, tornando-a mais digna de assentar na nobre carcaça humana, poderia dizimar, segundo as mais fiáveis previsões cientificas, milhões de seres humanos. O nosso reino não escaparia a ser assolado pelo terrível flagelo, pois nenhum país a ele se subtrairia, tanto mais que se tratava de uma pandemia a correr mundo a altíssima velocidade. Rapidamente o grau de perigo foi acentuado e dado o alerta vermelho pelas previdentes e mais do que prudentes autoridades sanitárias das organizações internacionais. Compreende-se: não vivemos na escuridão da Idade Média, em que as pestes alastravam com rapidez e ceifavam milhares de vidas, enquanto os sinos das igrejas tocavam a rebate. Hoje, mal desponta um foco infeccioso de qualquer natureza, difunde-se logo, urbi et orbi, por meios de comunicação poderosos, a iminente investida do morbo e tenta-se aniquilá-lo antes que ele leve a cabo a sua obra de devastação.
Assim aconteceu desta vez. Sem armas eficazes para repelir o mal, cientistas de craveira mundial rapidamente inventaram uma arma: uma agulha, uma seringa e um líquido para ser injectado no corpo humano e torná-lo imune. Chama-se a isso uma vacina. Tal a arma.
Inventada ela, tratou-se de propagandear a sua difusão, alertando-se sempre para os graves perigos mortais do vírus e para as muitas e muitas mortes que ocorreriam, caso a dita vacina não fosse aplicada em massa. As empresas farmacêuticas começaram a exportar, em doses maciças, a dita arma. Diariamente, acorriam aos diversos países milhares e milhares de agulhas e seringas – um autêntico arsenal de guerra para fazer face ao vírus destruidor. Em alguns deles, foi mesmo obrigatório submeter-se à picadela, sob pena de pesadas multas.
Ora acontece que o vírus se exilou e não apareceu com o ímpeto mortífero que tinha sido anunciado. Quando era suposto estar a pandemia a alastrar-se rápida e assustadoramente, chegou-se à conclusão de que o vírus tinha feito uma negaça e o número de doentes era ainda menos do que em anos de vírus normal. Assim, começou a zoar que tudo isto tinha sido uma gigantesca fraude das indústrias farmacêuticas, na qual tinham colaborado as tais instituições internacionais, o que até vinha a calhar para essas empresas encherem os bolsos, atendendo à grave crise que assola o mundo.
Ora, no meu modesto entender, não foi nada disso. O que se passou foi que o vírus arreganhou mesmo os dentes e estava preparado para fazer uma hecatombe. Todavia, fez-se tanto alarde contra o vírus e pôs-se em acção tamanho arsenal bélico para o debelar, que aquele deu-se por vencido e deu em retirada do campo de batalha. Assim se ganhou a guerra com uma monumental acção psicológica e uma presença ostensiva do armamento fabricado. Mas, para tal resultado, foi necessário produzir e exibir esse armamento, ainda que não utilizado na sua maior parte. Com isso o vírus assustou-se e as empresas tiveram, sem dúvida, para além de grandes e merecidos lucros, um papel altamente meritório, que é de toda a conveniência não depreciar. Igualmente, as entidades sanitárias tiveram um papel de largo alcance ao porem a população em situação de alerta máximo, porque este é igualmente muito útil em circunstâncias destas. O alerta máximo é uma espécie de prevenção superlativa e se um homem prevenido vale por dois, imagine-se quanto não representarão milhares de homens e mulheres em alerta máximo.
O nosso reino teve nisto uma actuação exemplar, como sempre tem tido ao longo de um já velho passado. Com efeito, as autoridades sanitárias assustaram a população em termos comedidos. Como afirmou um dos responsáveis nesta matéria, nunca se disse que ia haver uma mortandade. Sabendo que o nosso povo é bastante esperto e dotado de bravura, mas ao mesmo tempo um bocadinho relapso, alguns governantes deixaram-se exibir de braço ao léu, com uma enfermeira sorridente e obsequiosa a espetar-lhes uma comprida agulha. Tanto bastou para que uma escassa percentagem da população se fosse vacinar - o número de cidadãos suficiente para o vírus, temeroso da nossa proverbial resistência, se pôr logo em debandada, contentando-se com escassas dezenas de vítimas.
Deste modo, não foi preciso utilizar uma grande quantidade de vacinas, nem coagir os cidadãos a tomá-la. E muito mais do que isso: nem sequer foi necessário aplicar a 2.ª dose prevista. Por cima de tudo, como as vacinas encomendadas foram em quantidade muito inferior à de outros países, pois se o nosso povo é esperto os governantes também o são, quando toca a poupar esforços e dinheiro, não houve sobras nem gastos supérfluos, como se verificou na maior parte dos países que nos rodeiam. Assim demos um grande exemplo de como administrar sabiamente os fracos recursos que temos e debelar com comedimento inteligente os flagelos que nos assolam.
Jonathan Swift (1665 – 1745)