07 fevereiro 2010
A Crise Financeira e a Resposta Penal: uma reflexão importante
Publico esta comunicação de António Henriques Gaspar à Conferência "Direito Sancionatório e Sistema Financeiro", organizada pela Procuradoria-Geral da República e pelo Banco de Portugal em 28-29 de Janeiro últimos. Trata-se de uma reflexão muito interessante e útil sobre as limitações e inconsequências da sobrecriminalização, nomeadamente em matéria económico-financeira.
A CRISE FINANCEIRA E A RESPOSTA PENAL:
PERPLEXIDADE PRESENTE E REFLEXÃO SOBRE O FUTURO
1. Em Outubro de 2008 desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro, em que «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo» (Denis Muzet no “Nouvel Observateur”).
Foi o excesso de uma sociedade dominada pela financiarização da economia, e também por uma crise do bom senso.
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que tocou o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
Porque também não tem responsáveis que possam ser claramente designados pelas derivas, e sem culpados a crise não oferece a redenção da via da expiação. Apenas a sanção anónima dos abusos e dos excessos injustificados.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
2. A crise financeira e económica afectou profundamente os consumidores e os negócios que, em consequência, retraíram fortemente.
O sistema financeiro pareceu entrar em colapso e os sistemas de regulação falharam na prevenção de erros e abusos.
As explicações que os saberes específicos da economia nos concedem situam-se mais nas consequências do que nas causas. Faltou, talvez, falarem-nos das causas das causas.
A crise reflecte, segundo se escreve nas análises ou na «narrativa» mediática, o maior falhanço do sistema de regulação na história moderna, tanto da supervisão das entidades dos mercados de capitais como a omissão de intervenção prudencial.
Mas também na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência de alguns; quando a fronteira entre o virtual e o real é pouco nítida, torna-se relativamente simples fazer crer numa realidade volátil e sem distinção entre a ficção e a não ficção.
3. A crise surgiu como que com tempo marcado.
As crises financeiras, parece que emergem todas em Outubro.
Na aparente irrealidade dos factos, como lição da história e na dose suplementar de absurdo parece assemelhar-se, salvaguardadas as proporções, à crise das tulipas de 1636, obrigando a reflexões póstumas sobre a natureza dos factos e sobre a intervenção ou a omissão do direito penal.
Em primeiro lugar, a descrição do que foi explicado e nos transporta para uma dimensão quase irreal.
A começar pelas consequências. Segundo se estima, alguns bancos norte americanos, baralhando papel e recolhendo centenas de milhões de dólares em bónus, causaram perdas de 40 triliões de dólares na saúde financeira e provocaram a perda de 100 milhões de empregos na economia mundial.
A complexidade por detrás entorpece a compreensão dos leigos, já que as explicações não parecem ao alcance do senso comum.
A invenção de produtos financeiros possibilitada pelas novas tecnologias, segundo modelos matemáticos, através da titularização de pacotes de créditos, a criação de «derivados», não ligados a quaisquer activos reais, ou a titularização de várias naturezas com rentabilidade prometida aos compradores dos títulos, invadiram os mercados financeiros.
Na titularização e na multiplicação de camadas de titularização, a cadeia entre a base e o investidor final tornava-se cada vez mais distante e complexa.
Prometendo rendimentos excepcionais, superiores ao crescimento da economia, tais produtos foram disseminados e revendidos a todas as instituições financeiras, que por sua vez fabricavam e ofereciam outros produtos sem que ninguém pudesse estabelecer o seu «traço» ou «rasto» e a ligação à sua origem.
E se nos bancos ou nos fundos especulativos (hedge funds) alguns pudessem saber um pouco sobre o risco de tais produtos (o que depois da crise se vulgarizou na nomenclatura como «produtos tóxicos»), os aforadores ou investidores individuais não dispunham de qualquer meio de os conhecer ou avaliar.
A assimetria da informação teve uma dimensão inigualável.
Leigos, ficámos a conhecer siglas cujo significado não dominamos, e que nos transportam para uma dimensão de irrealidade num mundo virtual.
Subprimes, ABS (asset-backed securities); CDO (collateralized debt obligation); CDS (credit default swap), exteriorizam a identificação, quase iniciática, de «produtos» cuja natureza, construção, conteúdo, função, ligações, valor e riscos, não apreendemos, e apenas estão (estavam) ao alcance, presume-se, de uns quantos especialistas - «iniciados».
Sabemos hoje que algumas destas coisas eram produtos inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que por vezes dependiam dos acasos e eram indomináveis pelos seus criadores, e até cada vez menos compreensíveis para os dirigentes das próprias instituições financeiras que os propunham.
Alguns estabelecimentos financeiros «propunham aos seus clientes títulos desta natureza, cuja descrição constava de um manual de 150 páginas, que nenhum quadro superior do banco podia compreender e, consequentemente, controlar».
Toda a montagem foi, na verdade, um engodo, com a passividade, descuidado ou incompetência das (agora) todo poderosas agências de rating.
As remunerações dos dirigentes destas instituições financeiras e dos criadores destes produtos eram constituídas, no essencial, por bónus indexados aos benefícios anuais. Estavam associados aos lucros, mas não às perdas.
As instituições estruturaram-se para evasão à regulação: contabilidades dúbias, supervisões fragilizadas, produtos financeiros sem cobertura em activos reais, multiplicados sem fim em sistema de apostas (KRUGMAN).
Sem ancoragem no real, tudo parecia assemelhar-se a um jogo de ficção; ninguém sabia ou poderia saber o valor destes produtos.
Mas sustentavam as contas dos bancos, alojados em activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimulá-los aos reguladores.
Segundo algumas análises (JACQUES ATTALI, “La crise, et après”), quando, tarde e por vezes por razões acidentais, outros tomaram consciência da natureza insustentável das dívidas e dos activos, os «iniciados», perante o falhanço da construção, lograram manter o domínio da situação e conseguir obter dos Estados o financiamento das suas perdas, salvando um sistema de que haviam extraído tudo o que puderam.
No fim, parece que a crise serviu para «limpar» os activos «tóxicos», a expensas dos contribuintes.
No fundo, ganharam (e muito) os que deveriam perder, e perderam todos os outros – os inocentes da crise.
4. Na normalidade das coisas, esta realidade deveria ter convocado o direito penal.
A aparente irrealidade dos factos e o montante astronómico das somas, perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras, levam alguns mais radicais a considerar os contornos da crise como «a vast criminal enterprise», considerando que falta contar «the real story».
E manifestam surpresa por não haver investigações criminais, bem como por não existirem da parte dos economistas explicações fáceis de compreender. Quem causou a crise financeira e económica «It is a riddle, wrapped in a mystery, inside an enigma» (Churchill em 1939).
As recriminações começaram, no entanto.
Como refere um alto funcionário norte-americano dos serviços da inspecção financeira, a história ensina que a exposição de tanto dinheiro num tão curto período de tempo atrai inevitavelmente os que procuram lucrar criminalmente («History teaches us that an outlay of so much money in such a short period of time will inevitably draw those seeking to profit criminaly»).
De acordo com recentes dados públicos, disponíveis nos meios de informação global, nos EEUU o FBI iniciou mais de 1800 investigações relacionadas com fraudes na actividade bancária dos créditos hipotecários, estando as white-collar crime resources limitadas pelo número de investigações com fraudes societárias e nas instituições financeiras.
A fraude gigantesca que Bernard Madoff montou, embora constitua questão diferente e apresente uma incompreensível duração e montantes, tratando-se de um (dir-se-ia vulgar) esquema piramidal de Ponzi, certamente que aproveitou do ambiente em que se desenvolveu a crise.
No entanto, o discurso lenitivo sobre o paraíso da mundialização financeira e o quadro ideológico e político da desregulação criaram novas relações de valores e referências, relegando para outro plano ou diverso paradigma a dimensão, o conceito e o lugar da designada criminalidade económica e financeira.
Por isso, na narrativa pós declaração da crise esteve presente um conselho, que se deveria ler como advertência ou imposição: «let criminal law aside».
E só aconselha, impondo, quem pode impor o conselho.
Na desregulação que os mercados financeiros exigiram, tendo poder para exigir, e por certo precisamente por isso, «o direito penal não é para aqui chamado».
Os mercados financeiros são demasiado grandes e poderosos para ser contidos.
E no entanto as categorias penais clássicas pareceriam assentar bem no molde feito de factos que o registo exterior da revelação da crise nos apresentou.
Poderemos interrogar-nos sobre se a criação e o oferecimento para captação de aforros dos produtos financeiros inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que dependiam dos acasos, indomináveis pelos seus criadores, e cuja construção, natureza, riscos e valor apenas estariam ao alcance de uns quantos especialistas e nem seriam do domínio dos dirigentes das instituições financeiras, sem relação com valor real, mas muitos meramente virtuais e inteiramente especulativos, não deveriam ser acolhidos a categorias clássicas do direito penal, como a burla.
Ou se a utilização indevida de fundos entregues como depósitos em produtos de elevado risco sem a vontade esclarecida do depositante não se acolhe na categoria de abuso de confiança.
Ou ainda avaliar se os comportamentos de gestão em limites de risco mais do que temerário, colados à perda do sentido da decência de alguns, com consequências devastadoras para as instituições financeiras e para os seus accionistas, não poderiam eventualmente ser considerados nos tipos de infidelidade (artigo 224º do CP) ou de administração danosa (artigo 235º do CP).
Também as categorias dos artigos 255º e seguintes do CP (falsificação) poderiam acolher situações de manipulação dos balanços dos bancos, por meios de inscrição dos activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimular dos reguladores imparidades comprometedoras.
Para não falar dos tipos de insolvência (artigos 227º e 228º do CP), que, porventura, só a intervenção e o socorro do Estado impediram.
Haverá que aguardar que as entidades de investigação e as instâncias judiciais façam o seu caminho, percorrendo-o com a leitura e com os instrumentos normativos que julgarem adequados.
Mas estas são reflexões de circunstância, certamente sem consistência, por não se saber qual a realidade com que contamos, quando nos movemos numa realidade virtual.
As causas da crise apresentam-se sem responsáveis, e sem responsáveis não há direito penal.
5. Poderemos talvez tirar algumas lições para o futuro.
A dimensão da crise, com os seus mistérios, mostrou as consequências da desregulação.
A solução, como vem sendo proclamado, exige que os mercados, sobretudo ou pelo menos os financeiros, sejam equilibrados através de um Estado de direito eficaz.
A instituição de mecanismos de regulação para a detecção de riscos sistémicos para o conjunto do sistema financeiro – supervisão macro-prudencial, e para supervisão do comportamento individual das instituições financeiras – supervisão micro-prudencial, consta das propostas apresentadas pela Comissão Europeia (23 de Setembro de 2009) de reforma da regulação do sector financeiro europeu.
Mas nesta matéria talvez não seja de prever uma presença assídua do direito penal, nem que o direito penal possa ser de grande auxílio.
É certo que o direito penal económico, construído na pós-modernidade muito ao serviço de politicas e já não de valores, não de ultima ratio, mas ao sabor de circunstâncias às vezes para a simples gestão política do quotidiano, cresce de maneira exponencial, e nos «grandes domínios da economia» protege «o domínio financeiro do Estado» e a «tutela económica dos interesses da colectividade», em «áreas onde de forma aberta e sensível se podem e devem considerar penalmente relevantes alguns comportamentos que perturbam para lá do socialmente aceitável, o jogo claro e límpido em que a economia, enquanto valor instrumental, se traduz» (FARIA COSTA, “Direito Penal Económico”).
Os comportamentos que a crise financeira revelou, com as consequências próximas de catástrofe na economia, se perturbaram de forma brutal «o jogo claro e límpido», devem exigir a previsão de tipos penais adequados que os abranjam e que previnam o futuro.
Mas, se existir, ou quando exista adequada regulação, os tipos penais só poderiam ser pensados para as violações sérias das decisões reguladoras.
Haverá, porém, que reconhecer que o «carácter virtual dos actores» e a sua diluição nas organizações, só possibilitaria certamente encontrar uma responsabilidade limitada em muito ao âmbito das pessoas colectivas.
6. No entanto, algumas hipóteses podem ser pensadas sobre modos de enquadramento em categorias penais de alguns factores genéticos da crise que desagregaram o sentido do real e desafiaram os limites éticos.
A crise nasceu, segundo dizem, de imponderados comportamentos de risco e da falta de sentido da decência de muitos actores financeiros.
Os comportamentos temerariamente especulativos, com riscos muito elevados, sem relação com o real, com a criação, ou invenção, de produtos financeiros sem ligação sustentada, sem informação minimamente avisada e compreensível por quem investe na aquisição destes produtos de valor insuportavelmente distante de âncoras reais de segurança, afectam seriamente bens jurídicos instrumentais da actividade económica.
A previsão de tipos penais de perigo para prevenção de comportamentos na actividade financeira que geram riscos sérios de perturbação e de produção de danos para além do socialmente aceitável, poderia ser um caminho, com a vantagem de dar um sinal claro sobre a validade, a relevância dos interesses e dos valores instrumentais da actividade financeira, permitindo uma protecção recuada a momentos anteriores à produção de danos, com vantagens parava a investigação e a reconstituição processual.
Numa outra perspectiva, os tipos legais de infidelidade e de gestão danosa, relativamente esquecidos, poderiam acolher alguma recomposição da tipicidade.
Nas sociedades financeiras com grande dispersão de capital social é cada vez mais distante a relação entre os accionistas – ou um vasto universo diluído de accionistas – e as administrações, que são constituídas por gestores profissionais.
A separação entre accionistas e gestores como consequência da dispersão de accionistas produz um distanciamento de que emerge como que uma apropriação gestionária das próprias sociedades.
Nas sociedades financeiras, a separação, a alienidade da gestão e as contrapartidas remuneratórias dos gestores por bónus, podem predispor à assunção de riscos desproporcionados ou temerários, com consequências assimétricas, em que um eventual êxito será muito favorável ao gestor, mas em que as perdas comprometem essencialmente a estabilidade, penalizando os accionistas com a quebra ou desaparecimento do valor das suas acções.
A reconfiguração dos elementos típicos de “infidelidade” e de “administração danosa” poderia responder á carência de tutela penal dos desvios de racionalidade, prevenindo a repetição de aventuras gestionárias que a crise revelou.
Na infidelidade, porventura cindindo ou reavaliando a intensidade do elemento subjectivo, de modo a abranger comportamentos de temeridade especulativa, que estão paredes-meias ou valorativamente contíguos ao artifício ou engano.
Na administração danosa, alargando o âmbito objectivo da tipicidade para a generalidade dos sectores económicos, sem a actual restrição aos sectores público ou cooperativo.
A lacuna maior e mais evidente que emerge das circunstâncias da crise, permito-me encontrá-la, porém, na dificuldade de aplicação das actuais categorias do crime de insolvência, mesmo com a intervenção dos modelos dogmáticos das formas do crime (tentativa), quando a insolvência não chegue a ocorrer apenas por virtude da intervenção do Estado, por decisão de política, para evitar o risco sistémico para o sistema financeiro.
A intervenção pública, no entanto, se evita os graves danos sistémicos e a cascata de consequências associadas, não afasta nem apaga os comportamentos que conduziriam uma sociedade, nomeadamente de natureza financeira, a uma situação de insolvência.
A lei penal deveria, pois, prever, sem as dúvidas dogmáticas na construção, que em tais circunstâncias e não obstante a intervenção pública a impedir a insolvência por razões de interesse público, o tipo de crime deveria poder ser preenchido, com a consequente necessidade de averiguação e de processo para verificar a concorrência dos restantes elementos do crime doloso ou negligente de insolvência.
7. Mas, nestas matérias, tudo será questão de política, de vontade e de juízo de utilidade, quando o direito penal está, como arma de constrição, sobretudo ao serviço de políticas e não de valores, e não raro como instrumento voluntarista sem visão de sistema.
E na complexidade volátil dos mercados financeiros e dos seus interesses muito específicos, que não serão coincidentes com o jogo «claro e límpido» da economia, pode ser difícil um consenso social e político sobre o bem jurídico a proteger como valor relevante carente de tutela penal.
Na semana passada, o Presidente Obama anunciou medidas para limitar os riscos que a banca assumiu no passado e que estiveram na origem da crise financeira.
E justificou a intenção política referindo a «irresponsabilidade» manifestada pelo sistema financeiro, um ano depois, com o regresso a «velhas práticas».
Soaram as campainhas de alarme em Wall Street, com respostas que parecem conter alguma ameaça dos mercados financeiros.
Poderemos interrogar-nos, pois, se, aqui, o direito penal poderá ter alguma função útil de regulação preventiva, a não ser por uma intenção simbólica que, por regra, contém um pacto de ineficácia.
Recordo, de novo, o aviso deixado por aqueles que pensam poder avisar: «let criminal law aside».
(António Henriques Gaspar)
A CRISE FINANCEIRA E A RESPOSTA PENAL:
PERPLEXIDADE PRESENTE E REFLEXÃO SOBRE O FUTURO
1. Em Outubro de 2008 desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro, em que «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo» (Denis Muzet no “Nouvel Observateur”).
Foi o excesso de uma sociedade dominada pela financiarização da economia, e também por uma crise do bom senso.
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que tocou o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
Porque também não tem responsáveis que possam ser claramente designados pelas derivas, e sem culpados a crise não oferece a redenção da via da expiação. Apenas a sanção anónima dos abusos e dos excessos injustificados.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
2. A crise financeira e económica afectou profundamente os consumidores e os negócios que, em consequência, retraíram fortemente.
O sistema financeiro pareceu entrar em colapso e os sistemas de regulação falharam na prevenção de erros e abusos.
As explicações que os saberes específicos da economia nos concedem situam-se mais nas consequências do que nas causas. Faltou, talvez, falarem-nos das causas das causas.
A crise reflecte, segundo se escreve nas análises ou na «narrativa» mediática, o maior falhanço do sistema de regulação na história moderna, tanto da supervisão das entidades dos mercados de capitais como a omissão de intervenção prudencial.
Mas também na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência de alguns; quando a fronteira entre o virtual e o real é pouco nítida, torna-se relativamente simples fazer crer numa realidade volátil e sem distinção entre a ficção e a não ficção.
3. A crise surgiu como que com tempo marcado.
As crises financeiras, parece que emergem todas em Outubro.
Na aparente irrealidade dos factos, como lição da história e na dose suplementar de absurdo parece assemelhar-se, salvaguardadas as proporções, à crise das tulipas de 1636, obrigando a reflexões póstumas sobre a natureza dos factos e sobre a intervenção ou a omissão do direito penal.
Em primeiro lugar, a descrição do que foi explicado e nos transporta para uma dimensão quase irreal.
A começar pelas consequências. Segundo se estima, alguns bancos norte americanos, baralhando papel e recolhendo centenas de milhões de dólares em bónus, causaram perdas de 40 triliões de dólares na saúde financeira e provocaram a perda de 100 milhões de empregos na economia mundial.
A complexidade por detrás entorpece a compreensão dos leigos, já que as explicações não parecem ao alcance do senso comum.
A invenção de produtos financeiros possibilitada pelas novas tecnologias, segundo modelos matemáticos, através da titularização de pacotes de créditos, a criação de «derivados», não ligados a quaisquer activos reais, ou a titularização de várias naturezas com rentabilidade prometida aos compradores dos títulos, invadiram os mercados financeiros.
Na titularização e na multiplicação de camadas de titularização, a cadeia entre a base e o investidor final tornava-se cada vez mais distante e complexa.
Prometendo rendimentos excepcionais, superiores ao crescimento da economia, tais produtos foram disseminados e revendidos a todas as instituições financeiras, que por sua vez fabricavam e ofereciam outros produtos sem que ninguém pudesse estabelecer o seu «traço» ou «rasto» e a ligação à sua origem.
E se nos bancos ou nos fundos especulativos (hedge funds) alguns pudessem saber um pouco sobre o risco de tais produtos (o que depois da crise se vulgarizou na nomenclatura como «produtos tóxicos»), os aforadores ou investidores individuais não dispunham de qualquer meio de os conhecer ou avaliar.
A assimetria da informação teve uma dimensão inigualável.
Leigos, ficámos a conhecer siglas cujo significado não dominamos, e que nos transportam para uma dimensão de irrealidade num mundo virtual.
Subprimes, ABS (asset-backed securities); CDO (collateralized debt obligation); CDS (credit default swap), exteriorizam a identificação, quase iniciática, de «produtos» cuja natureza, construção, conteúdo, função, ligações, valor e riscos, não apreendemos, e apenas estão (estavam) ao alcance, presume-se, de uns quantos especialistas - «iniciados».
Sabemos hoje que algumas destas coisas eram produtos inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que por vezes dependiam dos acasos e eram indomináveis pelos seus criadores, e até cada vez menos compreensíveis para os dirigentes das próprias instituições financeiras que os propunham.
Alguns estabelecimentos financeiros «propunham aos seus clientes títulos desta natureza, cuja descrição constava de um manual de 150 páginas, que nenhum quadro superior do banco podia compreender e, consequentemente, controlar».
Toda a montagem foi, na verdade, um engodo, com a passividade, descuidado ou incompetência das (agora) todo poderosas agências de rating.
As remunerações dos dirigentes destas instituições financeiras e dos criadores destes produtos eram constituídas, no essencial, por bónus indexados aos benefícios anuais. Estavam associados aos lucros, mas não às perdas.
As instituições estruturaram-se para evasão à regulação: contabilidades dúbias, supervisões fragilizadas, produtos financeiros sem cobertura em activos reais, multiplicados sem fim em sistema de apostas (KRUGMAN).
Sem ancoragem no real, tudo parecia assemelhar-se a um jogo de ficção; ninguém sabia ou poderia saber o valor destes produtos.
Mas sustentavam as contas dos bancos, alojados em activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimulá-los aos reguladores.
Segundo algumas análises (JACQUES ATTALI, “La crise, et après”), quando, tarde e por vezes por razões acidentais, outros tomaram consciência da natureza insustentável das dívidas e dos activos, os «iniciados», perante o falhanço da construção, lograram manter o domínio da situação e conseguir obter dos Estados o financiamento das suas perdas, salvando um sistema de que haviam extraído tudo o que puderam.
No fim, parece que a crise serviu para «limpar» os activos «tóxicos», a expensas dos contribuintes.
No fundo, ganharam (e muito) os que deveriam perder, e perderam todos os outros – os inocentes da crise.
4. Na normalidade das coisas, esta realidade deveria ter convocado o direito penal.
A aparente irrealidade dos factos e o montante astronómico das somas, perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras, levam alguns mais radicais a considerar os contornos da crise como «a vast criminal enterprise», considerando que falta contar «the real story».
E manifestam surpresa por não haver investigações criminais, bem como por não existirem da parte dos economistas explicações fáceis de compreender. Quem causou a crise financeira e económica «It is a riddle, wrapped in a mystery, inside an enigma» (Churchill em 1939).
As recriminações começaram, no entanto.
Como refere um alto funcionário norte-americano dos serviços da inspecção financeira, a história ensina que a exposição de tanto dinheiro num tão curto período de tempo atrai inevitavelmente os que procuram lucrar criminalmente («History teaches us that an outlay of so much money in such a short period of time will inevitably draw those seeking to profit criminaly»).
De acordo com recentes dados públicos, disponíveis nos meios de informação global, nos EEUU o FBI iniciou mais de 1800 investigações relacionadas com fraudes na actividade bancária dos créditos hipotecários, estando as white-collar crime resources limitadas pelo número de investigações com fraudes societárias e nas instituições financeiras.
A fraude gigantesca que Bernard Madoff montou, embora constitua questão diferente e apresente uma incompreensível duração e montantes, tratando-se de um (dir-se-ia vulgar) esquema piramidal de Ponzi, certamente que aproveitou do ambiente em que se desenvolveu a crise.
No entanto, o discurso lenitivo sobre o paraíso da mundialização financeira e o quadro ideológico e político da desregulação criaram novas relações de valores e referências, relegando para outro plano ou diverso paradigma a dimensão, o conceito e o lugar da designada criminalidade económica e financeira.
Por isso, na narrativa pós declaração da crise esteve presente um conselho, que se deveria ler como advertência ou imposição: «let criminal law aside».
E só aconselha, impondo, quem pode impor o conselho.
Na desregulação que os mercados financeiros exigiram, tendo poder para exigir, e por certo precisamente por isso, «o direito penal não é para aqui chamado».
Os mercados financeiros são demasiado grandes e poderosos para ser contidos.
E no entanto as categorias penais clássicas pareceriam assentar bem no molde feito de factos que o registo exterior da revelação da crise nos apresentou.
Poderemos interrogar-nos sobre se a criação e o oferecimento para captação de aforros dos produtos financeiros inventados, que evoluíam segundo fórmulas matemáticas cada vez mais complexas, com variáveis que dependiam dos acasos, indomináveis pelos seus criadores, e cuja construção, natureza, riscos e valor apenas estariam ao alcance de uns quantos especialistas e nem seriam do domínio dos dirigentes das instituições financeiras, sem relação com valor real, mas muitos meramente virtuais e inteiramente especulativos, não deveriam ser acolhidos a categorias clássicas do direito penal, como a burla.
Ou se a utilização indevida de fundos entregues como depósitos em produtos de elevado risco sem a vontade esclarecida do depositante não se acolhe na categoria de abuso de confiança.
Ou ainda avaliar se os comportamentos de gestão em limites de risco mais do que temerário, colados à perda do sentido da decência de alguns, com consequências devastadoras para as instituições financeiras e para os seus accionistas, não poderiam eventualmente ser considerados nos tipos de infidelidade (artigo 224º do CP) ou de administração danosa (artigo 235º do CP).
Também as categorias dos artigos 255º e seguintes do CP (falsificação) poderiam acolher situações de manipulação dos balanços dos bancos, por meios de inscrição dos activos especiais, «exóticos», que permitiam dissimular dos reguladores imparidades comprometedoras.
Para não falar dos tipos de insolvência (artigos 227º e 228º do CP), que, porventura, só a intervenção e o socorro do Estado impediram.
Haverá que aguardar que as entidades de investigação e as instâncias judiciais façam o seu caminho, percorrendo-o com a leitura e com os instrumentos normativos que julgarem adequados.
Mas estas são reflexões de circunstância, certamente sem consistência, por não se saber qual a realidade com que contamos, quando nos movemos numa realidade virtual.
As causas da crise apresentam-se sem responsáveis, e sem responsáveis não há direito penal.
5. Poderemos talvez tirar algumas lições para o futuro.
A dimensão da crise, com os seus mistérios, mostrou as consequências da desregulação.
A solução, como vem sendo proclamado, exige que os mercados, sobretudo ou pelo menos os financeiros, sejam equilibrados através de um Estado de direito eficaz.
A instituição de mecanismos de regulação para a detecção de riscos sistémicos para o conjunto do sistema financeiro – supervisão macro-prudencial, e para supervisão do comportamento individual das instituições financeiras – supervisão micro-prudencial, consta das propostas apresentadas pela Comissão Europeia (23 de Setembro de 2009) de reforma da regulação do sector financeiro europeu.
Mas nesta matéria talvez não seja de prever uma presença assídua do direito penal, nem que o direito penal possa ser de grande auxílio.
É certo que o direito penal económico, construído na pós-modernidade muito ao serviço de politicas e já não de valores, não de ultima ratio, mas ao sabor de circunstâncias às vezes para a simples gestão política do quotidiano, cresce de maneira exponencial, e nos «grandes domínios da economia» protege «o domínio financeiro do Estado» e a «tutela económica dos interesses da colectividade», em «áreas onde de forma aberta e sensível se podem e devem considerar penalmente relevantes alguns comportamentos que perturbam para lá do socialmente aceitável, o jogo claro e límpido em que a economia, enquanto valor instrumental, se traduz» (FARIA COSTA, “Direito Penal Económico”).
Os comportamentos que a crise financeira revelou, com as consequências próximas de catástrofe na economia, se perturbaram de forma brutal «o jogo claro e límpido», devem exigir a previsão de tipos penais adequados que os abranjam e que previnam o futuro.
Mas, se existir, ou quando exista adequada regulação, os tipos penais só poderiam ser pensados para as violações sérias das decisões reguladoras.
Haverá, porém, que reconhecer que o «carácter virtual dos actores» e a sua diluição nas organizações, só possibilitaria certamente encontrar uma responsabilidade limitada em muito ao âmbito das pessoas colectivas.
6. No entanto, algumas hipóteses podem ser pensadas sobre modos de enquadramento em categorias penais de alguns factores genéticos da crise que desagregaram o sentido do real e desafiaram os limites éticos.
A crise nasceu, segundo dizem, de imponderados comportamentos de risco e da falta de sentido da decência de muitos actores financeiros.
Os comportamentos temerariamente especulativos, com riscos muito elevados, sem relação com o real, com a criação, ou invenção, de produtos financeiros sem ligação sustentada, sem informação minimamente avisada e compreensível por quem investe na aquisição destes produtos de valor insuportavelmente distante de âncoras reais de segurança, afectam seriamente bens jurídicos instrumentais da actividade económica.
A previsão de tipos penais de perigo para prevenção de comportamentos na actividade financeira que geram riscos sérios de perturbação e de produção de danos para além do socialmente aceitável, poderia ser um caminho, com a vantagem de dar um sinal claro sobre a validade, a relevância dos interesses e dos valores instrumentais da actividade financeira, permitindo uma protecção recuada a momentos anteriores à produção de danos, com vantagens parava a investigação e a reconstituição processual.
Numa outra perspectiva, os tipos legais de infidelidade e de gestão danosa, relativamente esquecidos, poderiam acolher alguma recomposição da tipicidade.
Nas sociedades financeiras com grande dispersão de capital social é cada vez mais distante a relação entre os accionistas – ou um vasto universo diluído de accionistas – e as administrações, que são constituídas por gestores profissionais.
A separação entre accionistas e gestores como consequência da dispersão de accionistas produz um distanciamento de que emerge como que uma apropriação gestionária das próprias sociedades.
Nas sociedades financeiras, a separação, a alienidade da gestão e as contrapartidas remuneratórias dos gestores por bónus, podem predispor à assunção de riscos desproporcionados ou temerários, com consequências assimétricas, em que um eventual êxito será muito favorável ao gestor, mas em que as perdas comprometem essencialmente a estabilidade, penalizando os accionistas com a quebra ou desaparecimento do valor das suas acções.
A reconfiguração dos elementos típicos de “infidelidade” e de “administração danosa” poderia responder á carência de tutela penal dos desvios de racionalidade, prevenindo a repetição de aventuras gestionárias que a crise revelou.
Na infidelidade, porventura cindindo ou reavaliando a intensidade do elemento subjectivo, de modo a abranger comportamentos de temeridade especulativa, que estão paredes-meias ou valorativamente contíguos ao artifício ou engano.
Na administração danosa, alargando o âmbito objectivo da tipicidade para a generalidade dos sectores económicos, sem a actual restrição aos sectores público ou cooperativo.
A lacuna maior e mais evidente que emerge das circunstâncias da crise, permito-me encontrá-la, porém, na dificuldade de aplicação das actuais categorias do crime de insolvência, mesmo com a intervenção dos modelos dogmáticos das formas do crime (tentativa), quando a insolvência não chegue a ocorrer apenas por virtude da intervenção do Estado, por decisão de política, para evitar o risco sistémico para o sistema financeiro.
A intervenção pública, no entanto, se evita os graves danos sistémicos e a cascata de consequências associadas, não afasta nem apaga os comportamentos que conduziriam uma sociedade, nomeadamente de natureza financeira, a uma situação de insolvência.
A lei penal deveria, pois, prever, sem as dúvidas dogmáticas na construção, que em tais circunstâncias e não obstante a intervenção pública a impedir a insolvência por razões de interesse público, o tipo de crime deveria poder ser preenchido, com a consequente necessidade de averiguação e de processo para verificar a concorrência dos restantes elementos do crime doloso ou negligente de insolvência.
7. Mas, nestas matérias, tudo será questão de política, de vontade e de juízo de utilidade, quando o direito penal está, como arma de constrição, sobretudo ao serviço de políticas e não de valores, e não raro como instrumento voluntarista sem visão de sistema.
E na complexidade volátil dos mercados financeiros e dos seus interesses muito específicos, que não serão coincidentes com o jogo «claro e límpido» da economia, pode ser difícil um consenso social e político sobre o bem jurídico a proteger como valor relevante carente de tutela penal.
Na semana passada, o Presidente Obama anunciou medidas para limitar os riscos que a banca assumiu no passado e que estiveram na origem da crise financeira.
E justificou a intenção política referindo a «irresponsabilidade» manifestada pelo sistema financeiro, um ano depois, com o regresso a «velhas práticas».
Soaram as campainhas de alarme em Wall Street, com respostas que parecem conter alguma ameaça dos mercados financeiros.
Poderemos interrogar-nos, pois, se, aqui, o direito penal poderá ter alguma função útil de regulação preventiva, a não ser por uma intenção simbólica que, por regra, contém um pacto de ineficácia.
Recordo, de novo, o aviso deixado por aqueles que pensam poder avisar: «let criminal law aside».
(António Henriques Gaspar)