21 julho 2010

 

Duas bofetadas em Argel em 1953

A propósito dos minaretes da Suíça, do véu islâmico em França, e outras simpáticas atitudes do "Ocidente" para com o mundo islâmico, aqui transcrevo esta página do Diário de Miguel Torga com data de 14 de Setembro de 1953:

As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França. Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represálias.
Este cartesianismo europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um dos lados do diálogo: a opinião do indígena. Que pensa ele do benefício? Que disse o inca no Perú, o asteca no México, o negro em Angola? Que diz o árabe, aqui? Interessa-lhe mais a penitência da cruz, ou a volúpia do crescente? Prefere ver as formas, ou adivinhá-las? Claramente que nunca passou pela cabeça dos apostólos fazer a pergunta. Armados até aos dentes e senhores duma técnica manual e mental demoníaca, julgam ocioso fazê-la. Mas todo o submetido responde, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem ser interrogado. Embora a séculos da agressão, os incas estão a responder, e os astecas também, e os negros também. E não me parece que o mundo islâmico se cale, túrgido como o vejo, com todas as energias represadas nas dobras do albornoz.
Na voz salmodiada dos velhos muezins, que desce dos minaretes e repercute multiplicada e rejuvenescida nas gargantas adolescentes, no silêncio duma Casbá onde a alma forasteira penetra como lâmina em bainha sem fundo, no bulício das feiras que a miséria circunda dum halo de comício, o espírito ocidental suspicaz surpreende a força incoercível duma religiáo a que já nada de autêntico temos a opor, e o ódio de uma vontade humana que nunca se concebeu esmagada. Mais do que o poder dos engenhos de repressão, do que as seduções dum progresso que atropela as essências, vale a obstinação dum versículo que se estampa nos olhos, depois de ser carícia nos lábios e friso caligráfico nas mesquitas. E mais ainda do que ele, vale a liberdade. O gosto de ser livre diante do próprio deus.

Diário, VII

Para ler e reler (digo eu)





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