23 novembro 2011

 

A pena negociada

Um debate sério e franco é coisa a que não se deve fugir, sobretudo em questões de Justiça. Inflelizmente, o "debate" público em redor dos problemas (magnos) que a afectam tem-se pautado por uma indisfarçável superficialidade, pela "tirada" irreflectida, pela fulanização, enfim pela confusão entre o acessório e o principal. Por isso - e também por ser um dos co-autores do trabalho analisado por Maia Costa - entendo alinhar uma ou outra observação sobre a "solução" do grupo de trabalho da Associação S. dos Juízes Portugueses. Por ter estado mais directamente envolvido no tema da "justiça negociada" é sobre ele que me ocuparei nessas observações. Em defesa da dama, pois.




Em primeiro lugar, uma frontal convergência de "sentir": não há reforma judicial ou processual, por mais ousada que seja, por mais cortante que se mostre, que resista a atavismos judiciais, a culturas judiciárias passivas e menos ainda àquilo que os criminologistas há muito apodam de second codes dos "agentes" das instâncias formais de controlo, que não raro substituem os seus programas pessoais, a sua visão do que devia ser a lei, aos programas legislativos, àquilo que a lei é. Com especial relevância para o Ministério Público. Num sistema processual penal de estrutura (basicamente) acusatória, como é o nosso, compete àquela importantíssima instituição, pela proactividade que se lhe assinala (em confronto com uma relativa passividade do juiz), a primeira e decisiva responsabilidade na execução das linhas de política criminal legitimamente desenhadas pelo poder legislativo. Breve, se o MP não promove o juiz não decide. É esse o drama (e a razão da falência) dos mecanismos (que alguns, 40 anos depois, ainda chamam de "novos"...) de diversão processual como é o caso, de entre outros, da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo. Portanto, "apontar o dedo" ao MP, como primeiro responsável pela execução do programa político criminal que vai neles (naqueles institutos) implícito e, correspectivamente, pelo insucesso dessa execução, não pode ser levado à conta de "juizite" ou de pulsão para uma estéril "guerrilha corporativa" - é um facto que qualquer pessoa minimamente atenta aos problemas da Justiça rapidamente intui e apreende. Trata-se, pois, de um problema de formação profissional. Mas também é mais do que um problema de "mera" organização hierárquica: é um problema de hierarquia! E um problema de critérios inspectivos! Ou seja, como um dos companheiros deste blogue já várias vezes demonstrou em trabalhos seus, os "controlos internos", por via da hierarquia e da inspecção são tão ou mais importantes que os estritamente processuais para conter derivas discricionárias reais (para usar um chavão criminológico) dentro de um sistema de legalidade formal como é o nosso.




Posta esta limitação a qualquer reforma, também não se pode esquecer que a lei tem, apesar de tudo, algum "potencial performativo" - possibilitar a negociação de penas não é o mesmo que vedá-la. Abrir essa possibilidade é sempre melhor, em termos de eficácia (fico-me por aqui, por agora), do que fechá-la. De resto, não se trata de um "salto no escuro". Com a recente reforma alemã, Portugal será mesmo o último resistente às soluções de justiça negociada. O argumento da emulação vale o que vale, bem sei. Mas também é verdade que, descontando os exageros norte-americanos, não consta que a consagração de várias formas de justiça negociada (aliás recomendadas pelas instâncias europeias) por essa Europa fora tenha tido resultados que se possam globalmente considerar injustos ou incompatíveis ainda com um sistema de justiça penal de um Estado de Direito.




Por outra banda, se falei nos exageros norte-americanos não foi por acaso. Sempre que se fala de "justiça negociada" é inevitável o reflexo diante dos nossos olhos do exemplo daquele país (veja-se, abaixo, o postal de Maia Costa). Mas sendo isso compreensível, em razão da vocação totalizante da cultura jurídica daquele país (veículada, antes do mais, por agentes da comunicação social de formação jurídica - e mais ainda jurídica comparada - altamente duvidosa; diria mesmo que entre eles e o Direito há uma espécie de Muralha da China), não nos deve levar à conclusão, precipitada, de que ocorre uma pura e simples "marcha triunfal" do processo penal norte-americano pelo Mundo (para usar uma expressão de um conhecido penalista). Pois se pararmos e reflectirmos, logo concluiremos que as diferenças entre a esmagadora maioria das soluções de justiça negociada na europa (e também na Améria do Sul) e a solução (na realidade são várias) norte-americana não é menor do que as diferenças na fase do julgamento na maior parte da europa e nos E.U.A. São até bem maiores! - a ninguém ocorrendo dizer que há também, naquele aspecto (do julgamento), uma "americanização" do direito europeu!




Pois bem, revertendo à proposta da ASJP, ela distingue-se radicalmente da solução canónica norte-americana: não se trata meramente de que aquela nossa visão "não propõe a reprodução integral do sistema americano". Ela é radicalmente distinta; não é um problema de grau - é outra coisa. Deixo assim relacionados sete critérios pelos quais entendo que essa diferença se pauta (e que mostram aliás as linhas gerais do que efectivamente se propõe):




1 - Em primeiro lugar, ao contrário do que se passa em pelo menos alguns estados norte-americanos não se pode negociar a imputação, mas apenas a pena - a negociação da imputação é incompatível com o princípio da culpa e da verdade material. Ou seja, se o carro vai de sul para norte não se pode negociar que vai de norte para sul. Isto é possível e sucede frequentemente nos E.U.A.




2 - Ao contrário do que se passa no ordenamento processual penal norte-americano, não se pode negociar qualquer pena (discute-se aí a bizantinisse do "suicídio judicial", no caso de a declaração de culpa corresponder a crime punível com a morte...). A negociação está limitada a penas concretas até 5 anos de prisão.




3 - Em terceiro lugar, a atenuação de pena que é conatural a qualquer sistema de negociação (sem ela não há qualquer incentivo à negociação) não depende, na proposta da ASJP, da dinâmica de negociação, da relação de forças entre as partes negociadoras (um dos maiores problemas do lado de lá do Atlântico) - ela é fixada por lei, tal como sucede em vários países, nomeadamente na Itália e em estados escandinavos.




4 - Em quarto lugar, e importantíssimo, ao contrário do que sucede no procedimento de negociação norte-americano (aspecto muito criticado naquele país e que já suscitou várias tentativas de reforma), na proposta da ASJP, para o caso de o arguido a final recusar a aplicação de pena consensual, fica vedada a aplicação, na forma comum, de pena mais gravosa do que a proposta pelo MP e aceite pelo juiz sem a atenuação prevista na lei. Esta proibição de reformatio in pejus é essencial para obstar a um uso retorsivo do processo que infecta o processo penal norte-americano. Consegue-se assim um justo equilibrio entre as garantias do arguido e os incentivos necessários à vigência de soluções negociadas.




5 - Em quinto lugar, ao contrário do que se passa no processo penal norte-americano - desenhado sobre um modelo "two cases approach" -, ao negociar a pena o arguido conhece os indícios que constam (ou não) do processo. Não negoceia no "escuro". Pode por si e em conferência com o seu defensor ponderar as suas reais possibilidades: nada que já não faça quando se propõe confessar em julgamento. Nos E.U.A. a obrigatoriedade de o "MP" dar a conhecer ao arguido prova esculpatória não tem vigência no processo de negociação...




6 - Não é por acaso que há autores (norte-americanos) que referem que são precisamente os modelos de "investigação oficial" ("one case approach"), como o nosso e muitos outros na europa, os mais adequados (pela concentração do material probatório num dossier) ao escrutínio da conformidade entre a realidade dos factos e a admissão da culpa por banda do arguido. É precisamente isso que acontece com a proposta da ASJP e não sucede com o modelo americano.




7 - Por fim mas não menos importante, a proposta da ASJP fez finca pé em preservar a imagem de (e a) imparcialidade do juiz, o que dificilmente sucede em modelos (como em certos estados norte-americanos e no recente modelo alemão) em que o juiz surge como dinamizador da negociação e que, perante o insucesso dela, prossegue ele próprio a dirigir o julgamento...




Como disse, essas são diferenças radicais, de tomo. A consideração delas não faz da proposta em causa uma coisa de mais ou menos relativamente à hipótese clássica da negociação norte-americana: é outra e muito diferente coisa.













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