05 novembro 2011

 

As duas justiças


Há uma justiça penal para poderosos e outra para desprotegidos. A primeira emperra e a segunda, melhor ou pior, vai funcionando. Actualmente, fala-se disto à boca cheia e a comunicação social não se cansa de denunciar o escândalo, como se, finalmente, se tivesse descoberto a pólvora. Mas já há muito que certas entidades, instituições e simples particulares vêm alertando para a situação, sem que esse alertamento tivesse provocado grande impacto nos meios de comunicação social. Pelo menos a partir da década de 90, Cunha Rodrigues, então procurador-geral da República, focou várias vezes esse problema em várias comunicações públicas que fez. E Jorge Sampaio, enquanto presidente da República, abordou várias vezes o tema do “excesso de garantismo” (antes de inflectir o discurso quase cento e oitenta graus depois do processo Casa Pia) como uma das causas do protelamento indefinido de certos processos. Isto, para só mencionar duas entidades, entre várias que falaram do assunto, assim como representantes de instituições, de associações sindicais de magistrados, de várias pessoas que escreveram em publicações periódicas e não periódicas, entre as quais, se me permitem a imodéstia, o escriba destas linhas, durante os anos que escreveu no Jornal de Notícias, tendo mesmo intitulado uma das crónicas, de 10/12/98, de «As duas faces».
Hoje, há muitas pessoas que se mostram profundamente escandalizadas com a desigualdade na justiça, atribuindo ignorantemente as causas dessa disfunção aos tribunais e, preferentemente, aos magistrados. Como se pudesse haver uma justiça igual para todos numa sociedade profundamente marcada pela desigualdade. Não há justiça digna desse nome (refiro-me à justiça dos tribunais), quando inexiste a base que a suporta: a justiça social.
As sucessivas reformas que tem havido não têm resolvido o problema e, às vezes, têm-no agravado. A última grande reforma no processo penal, veiculada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, realizada em pleno desenvolvimento da inversão do discurso do “excesso de garantismo”, após o processo “Casa Pia”, sob muitos aspectos veio trazer mais complicação, sobretudo com as alterações introduzidas à última hora pela Assembleia da República, originando mesmo contradições sistémicas, denunciadas vigorosamente por profissionais da justiça e por penalistas de reconhecida competência, como os professores Figueiredo Dias e Costa Andrade, o que não quer dizer que, em alguns aspectos, se não tenham melhorado as soluções. Em suma, as reformas amontoam-se, introduzindo perspectivas filosóficas díspares e quebrando a unidade do sistema, para além da confusão gerada pela convocação de vários regimes legais para a solução do mesmo caso. E a isto acrescem os estrangulamentos financeiros e a redução de recursos materiais e humanos justificados sucessivamente com a “crise”.
O que é certo é que o fosso entre uma justiça para poderosos e outra para desprotegidos não se atenuou, parecendo até ter-se agravado. Os recentes casos que têm vindo a público são altamente elucidativos de como, havendo meios materiais, se usa e abusa de mecanismos processuais até ao ponto de a justiça se converter numa paródia e numa descarada frustração dos seus objectivos. É deprimente e, ao mesmo tempo, revoltante, mesmo e sobretudo para quem exerce funções jurisdicionais e se vê constrangido a ter de aceitar (se não a sofrer) estas jogadas indecentes.





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