26 dezembro 2013

 

Discurso de S. Nicolau em tempos de crise


«Minhas pequenas senhoras! Meus pequenos senhores! Têm encarecido muito as coisas no paraíso durante os últimos anos. Os géneros de primeira necessidade estão pela hora da morte. O preço do maná tem dobrado pés com cabeça. As rendas de casas das estrelas têm subido muito, e ainda o outro dia, conversando sobre este assunto com o meu compadre e amigo S. Pedro, porteiro, ele me contava que se não tem hoje uma pequena água-furtada senão pelo dobro do preço por que antigamente se alugava um bom primeiro andar na Via Láctea. A mão-de-obra das asas dos serafins tem encarecido na mesma proporção, e há santas, boas menagères, que têm despedido muitos querubins das suas peanhas, por não os poderem sustentar, ficando apenas com um anjo para todo o serviço ou tomando um querubim a dias. O mafarrico, com quem me encontrei há dias numa excursão de recreio, referiu-me que as coisas não corriam melhor no Averno. Têm ali afluído nos últimos anos muitos banhistas de enxofre. O número das almas em tratamento sulfúreo é enorme, gasta-se imenso combustível, o que tem feito encarecer tudo. Acrescentou o mafarrico, que só na verba cabeleireiro gastava ele hoje dez vezes o que gastava antes para lhe pentearem o rabo e para lhe frisarem os chavelhos aos sábados. De modo que, meus pequenos senhores e minhas pequenas senhoras, não é só neste mundo que é preciso economia; ela é indispensável em toda a parte. Para o fim de responder liberalmente às cartas que vós me dirigistes, e que eu oportunamente mandei buscar aos vossos sapatos pelo meu escudeiro Hauscrouff, que ora vedes presente neste recinto, eu gastei todos os meus bens da mitra, e ainda está uma boneca – essa maior – que ficou na conta para ser paga em prestações ao mês. De forma que, enquanto vós ides brincar alegres e satisfeitos com os vossos bonitos que vos trouxe, uma grande infinidade de meninos se acham por esse mundo a chorar, por não terem brinquedos nenhuns. Peço-vos pois que, para fazer deste dia dos meus anos um dia de alegria completa e geral, me deis todos os vossos bonitos velhos, a fim de que eu presenteie com eles as criancinhas menos felizes, que não podem ter como vós bonitos novos. Hauscrouff! Aproximai o cesto!»

 

Este discurso de S. Nicolau foi escrito nos nossos dias? Até parece que sim, mas não foi. Foi escrito não sei em que data, mas seguramente na segunda metade do século XIX. e vem n’ As Farpas de Ramalho Ortigão, T. 5º, Livraria Clássica Editora, a propósito da celebração do  Natal e do pouco cuidado que as nossas crianças mereciam às entidades oficiais, em contraste com as tradições das «pequenas nações amoráveis, como a Holanda e a Bélgica», onde impera(va) a pedagógica acção natalícia do venerando S. Nicolau.  

Pelos vistos, a boa tradição desses países do Norte, fez chegar primeiro a austeridade às regiões etéreas dos santos e serafins e às profundas do Inferno, antes de a imporem aos bárbaros países do Sul.

21 dezembro 2013

 

Uma lição de coragem e de dignidade


 

Apesar das insistentes pressões e até ameaças com as terríveis consequências que recairiam sobre os ombros dos juízes, apesar de certas manobras muito próximas da chantagem e dedos apontados aos privilégios de que gozam em relação a outros juízes (alguns deles reais e outros visando situações muito específicas, mas malevolamente generalizados), apesar dos recados de entidades europeias, como o presidente da Comissão e de instituições internacionais, como a directora-geral do FMI, antepondo a tudo o mais os interesses dos credores, apesar dos vitupérios com que alguns responsáveis procuraram denegrir a sua actividade jurisdicional mais recente, o Tribunal Constitucional soube resistir de uma  forma magnífica  e demonstrar a sua independência, face à violentação que sobre ele tem sido exercida e às tentativas de forçar o texto constitucional para lá de limites toleráveis.

A solução de unanimidade que foi encontrada é uma resposta demasiado eloquente, sabido que o Tribunal Constitucional tem sido parco, contido e até, em muitos aspectos, complacente nas várias decisões que tem emitido.

Esta decisão representa sobretudo, para além da sua aparente justeza (ainda não tive oportunidade de ler o acórdão), uma lição de coragem e de dignidade, face a uma tentativa, por parte de certas entidades oficiais, de submeter o poder judicial a ditames político-ideológicos (e digo poder judicial genericamente, porque se o cerco é agora ao Tribunal Constitucional, é porque as suas decisões têm uma indiscutível relevância para o poder político do momento; se acaso outros tribunais tivessem ou viessem a ter idêntica relevância, é legítimo supor que o comportamento dessas entidades seria o mesmo ou parecido) e um exemplo de independência para os juízes de todo o espectro judiciário, por maiores que sejam as contrariedades que possam enfrentar.      

20 dezembro 2013

 

A Constituição sempre dá de comer

Afinal a Constituição e os seus princípios estruturantes sempre dão de comer, ao contrário do que pensa (?) o PM. Que o digam, pelo menos, os pensionistas. E não só esses têm beneficiado de uma maior folga alimentar por força da Constituição. De salientar a unanimidade dos juízes do TC, pela primeira fez obtida nestas matérias intensamente políticas. Este Governo carece manifestamente de aconselhamento jurídico, apesar de algumas "sumidades" que o compõem, algumas delas com pretensões europeias, mas manifestamente imaturas, mesmo quando o nome sugere o contrário. Uma unanimidade em torno do princípio da confiança, que o TC inicialmente se mostrou renitente em invocar, mas que agora funcionou como fundamento nuclear da inconstitucionalidade. O TC tornou-se efetivamente um baluarte da Constituição. (Quanto ao dr. Subir (?), que capitaneia a tríade dos agiotas, será altura de ele estudar melhor o sistema jurídico português... Eu sei que é uma chatice para os economistas haver leis e constituições... Para eles, leis só as da natureza, ou seja, a lei do mais forte...).

15 dezembro 2013

 

O Uruguai na vanguarda

O Uruguai tomou a linha da frente em matéria de política de drogas, concretamente de cannabis. Não estamos já na abordagem "pragmática/envergonhada" da Holanda. Já não se trata de fechar os olhos à venda de haxixe. Trata-se, sim, de frontalmente legalizar/regular o comércio dessa droga, como de uma mercadoria que é, embora perigosa, e por isso se adotam as cautelas necessárias, como acontece com a venda de fármacos. Trata-se obviamente de uma rutura assumida de frente e sem apresentação de desculpas com a política proibicionista que desde 1961 os EUA impuseram ao mundo inteiro, desencadeando uma guerra interna contra os negros pobres, e exportando essa guerra para os países produtores ou de trânsito, como o México, a Colômbia, o Brasil... Talvez nenhuma outra política penal tenha sido tão mortífera, tão cruel, tão desumana. A "guerra civil" na fronteira entre o México e os EUA, a guerra de guerrilha nas favelas do Rio de Janeiro, e outras guerras internas pelo mundo fora estão aí para atestar o desastre humanitário do proibicionismo. A ONU está contra evidentemente, dominado como está o seu organismo especalizado nas drogas pelos americanos. Também quando Portugal descriminalizou o consumo sofreu a excomunhão de tal organismo. Hoje, a política portuguesa, com todas as suas limitações, recebe elogios internacionais... O Uruguai resolveu apostar tudo duma só vez. Poderá dizer-se que a política internacional sobre o haxixe (pelo menos sobre o haxixe) se joga agora no Uruguai, nos próximos anos. Uma derrota seria trágica. Uma vitória terá repercussões inevitáveis em todo o mundo. Saudemos o Uruguai. Não é por serem pequenos que os países estão impedidos de marcar a história e indicar rumos novos ao mundo.

 

Opacidades

Rui Rio continua muito ativo e sempre muito opinativo em matéria de justiça. Agora voltou à carga para criticar a "opacidade" da justiça e disse que a situação é de tal forma grave que se trata de uma "questão de regime, e não de governação"... O que quererá ele dizer com estas palavras opacas?... Aliás, não menos opacas do que aquelas que constam do projeto de "reforma do Estado", onde se fala da necessidade de mudar a "arquitetatura do sistema de justiça"... O que quer esta gente com tanta opacidade? Certamente que nada de bom para a independência do poder judicial. Porque o que no fundo os irrita não é a morosidade da justiça, onde ela exista, é a independência dos tribunais! E que se possa recorrer aos tribunais administrativos para impugnar os atos de governantes, e acima de tudo que existe um tribunal que possa analisar a constitucionalidade das leis... A "reforma de regime" que eles querem para o poder judicial, sem até agora nunca o assumirem frontalmente, não deverá andar muito longe da reclamada por Berlusconi... Mas ao menos sejam francos, acabem com opacidades!

14 dezembro 2013

 

Há um outro paradoxo

É o primeiro-ministro ter afirmado que os juízes do TribunalConstitucional não são pressionáveis.
Ora aqui está um muito elevado conceito daqueles juízes.
Mas, sendo assim, por que é que se tem insistido tanto e tão obsessivamente na ideia de o TC se dever solidarizar com os outros órgãos de soberania (ou seja, com o governo e a Assembleia da República, na sua expressão maioritária)? Por quê insistir tanto na ideia de que, chumbando os projectos do governo e da maioria, o TC pode provocar o descalabro? Por quê fazer tantos avisos ao TC?
Por mero desabafo que o vento leva? 

 

Paradoxos


Paradoxos

Christine Lagarde voltou a afirmar que a austeridade aplicada aos países “sob programa”, como Portugal e a Grécia, foi excessivamente aplicada, sem se curar dos efeitos que a mesma veio a ter no desenvolvimento da economia e no desemprego, e que se deveria ter dado mais tempo a esses países para cumprirem as suas obrigações.

Excelentes palavras amigáveis. O pior é que os técnicos da prestimosa instituição que dirige, enquanto integrando a troika, não parecem ter a mesma opinião. Parecem até ter a opinião contrária, o que nos leva a pensar na história do polícia bom e do polícia mau. Ela diz: Coitados! Tão maltratados! Não mereciam isto. É uma injustiça!

Eles, por seu turno, os técnicos do FMI que cá têm vindo, nas costas dela, vão fazendo coro com os outros da troika: É carregar nesses gajos. Têm de cumprir o programa estabelecido dentro do prazo e apertar o cinto ainda mais. Ainda aguentam.

Também Passos Coelho afirmou: Concordo com a Senhora Christine Lagarde. O programa foi mal lançado. O pior é que o governo aplicou a dose da troika reforçadamente, isto é, aplicou em excesso a excessiva receita que eles nos deram e não queria ouvir falar de alargamento do prazo.

E, sendo assim, não se sabe o que é que significa aquela concordância com Lagarde.

Significa que as palavras de Lagarde são levadas a sério e que agora o chefe do governo se arrepende (neste caso, duplamente, pois foi duplo o erro cometido: um excesso de um excesso)?

Significa que as palavras de Lagarde não são levadas a sério, são mais uma manifestação exterior, e que aquela concordância é apenas uma deferência diplomática para com os ditos inconsequentes da directora-geral do FMI?

09 dezembro 2013

 

Mandela


 Claro que a figura de Nelson Mandela enche todo um século. Isso é incontestável. Talvez por isso haja um consenso demasiado óbvio à volta da exaltação de tal personagem, agora que desapareceu do seio dos vivos. Mas há por aí (por aqui e por esse mundo fora) muita gente que não é digna de lhe prestar vassalagem. Se houvesse microfones indiscretos como no parlamento checo, talvez muitos outros impostores se descobrissem, embora exteriormente rendidos ao mito.

01 dezembro 2013

 

Que recuperação?


 

Suponhamos que a economia vai recuperar um dia, mas a que preço?

À custa da brutal descida dos salários, vencimentos e pensões, do desmantelamento da legislação laboral, da asfixia da classe média, do desemprego avassalador, do esfrangalhamento do Estado Social.

Parte dessas perdas nunca mais serão recuperadas; outras sê-lo-ão, a passo de caracol, até levar tempo a atingir o nível que se tinha atingido antes de se ter provocado a queda. Qualquer subida parecerá, então, uma recuperação, um progresso. Assim acontecerá com os salários e vencimentos, mas será isso recuperação para quem foi forçado a descer de nível?

E recuperará quem perdeu (porque alguns não perderam; ganharam; vão continuar a ganhar) a integralidade do que perdeu, mesmo restringindo a recuperação à parte puramente patrimonial?  

Não ficarão muitos de fora até ao fim das suas vidas?

Não ficarão outros à mercê de quem foi fortalecido com o abaixamento deliberado do nível que lhes foi outorgado como direito básico?

Não ficarão tantos e tantos arredados da terra onde nasceram e onde sonharam uma pátria?

 

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