02 junho 2014
Saída Limpa
Carta escrita a uma
cidadão estrangeiro sobre os graves problemas que temos vivido no nosso país, a
revolução que tivemos que empreender e os perigos que ainda corremos.
Não há nada mais límpido do que a divisa
“saída limpa”, embora muitos compatriotas nossos, adeptos do antigo estado de
coisas, prefiram não ver essa claríssima realidade.
Mas vamos à explicação que
V. M. tão honrosamente me solicita.
Tínhamos uma situação
má, como V.M. sabe, uma situação muito crítica, herdada dos tempos da
“Revolução dos Cravas” e dos tempos conturbados que se lhe seguiram,
caracterizados por uma desenfreada distribuição de direitos e privilégios à
grande massa da população e que levaram o Estado a “engordar” e a tomar
aspectos disformes, com grandes gastos de dinheiros públicos.
A situação foi andando
de mal a pior, sem que ninguém tivesse a coragem de lhe pôr cobro definitivamente,
apesar de algumas recuperações que foram tendo lugar, mas sem irem ao cerne das
cousas, até que surgiu esta crise internacional que ia pondo em colapso várias
nações e, entre elas, a mais poderosa, uma crise que muita gente mal
intencionada atribuiu ao que designou de “abutres da finança”, mas que, como V.
M. sabe, foi ocasionada por uma catástrofe natural – um enorme tufão que
varreu, selectivamente, grandes bancos e companhias de seguros.
A crise originada pelo
tufão comunicou-se a muitos países que estavam mais dependentes daqueles,
principalmente aos mais fracos, porque, como diz sabiamente o nosso povo, “os
mais fracos apanham sempre por tabela”. É do destino e não há volta a dar-lhe.
Foi assim que chegou à nossa fidelíssima nação. A “bolha”, como se diz em tão
apropriada metáfora, porquanto alusiva a uma fatal dificuldade de fluidez
sanguínea, que é como quem diz, “fluidez do dinheiro”, que é o verdadeiro sangue
das nações, atingiu-nos e causou o dessoramento de alguns bancos, entre os
quais o célebre Banco Patriótico Nacional, que houve necessidade de salvar,
para não contaminar a doença a outros.
Este infausto
acontecimento veio acrescentar-se à principal causa do nosso descalabro – a
tumefacção do aparelho estadual, originada por enormes gastos com a
proliferação de direitos e privilégios de que falei acima e por um verdadeiro
exército de servidores do Estado, criado para dar vazão aos serviços implicados
por aqueles. Por isso, não houve outro remédio senão pedir dinheiro aos países
nossos aliados. A esses tempos de dissipação que foram os de políticos que
embriagaram o nosso povo com benesses, subsídios e prestações de toda a ordem,
engordando o Estado com serviços e despesas inconcebíveis, é que devemos o
termos de estender a mão aos povos estrangeiros, embora nossos aliados. Daí
que, muito apropriadamente, designemos esses tempos ominosos como a “Revolução
dos Cravas”.
Os países nossos
aliados e o Fundo Mundial de Interesses emprestaram-nos o dinheiro, mas
exigiram-nos contrapartidas pesadas, porque, imbuídos de uma recta moral, nos
quiseram dar ensino por “vivermos acima das nossas possibilidades” e, ao mesmo
tempo, como é lógico, tirarem o máximo proveito da sua generosidade, assim
juntando o útil ao agradável.
Em boa verdade, nós
também queríamos os mesmos objectivos que eles, ou eles pretendiam os mesmos
objectivos que nós, em nome de uma verdadeira União: pôr termo, de vez, à orgia
daqueles tempos em que tudo eram gastos com direitos e privilégios para todas
as classes de pessoas. V. M. há-de convir que o Estado não pode ser uma espécie
de cobertor para albergar tutti quanti.
Não. Essa utopia pertence ao passado; está completamente ultrapassada no mundo
inteiro. Quem quiser ter um nível de vida razoável tem de fazer por isso; tem
de o ganhar com esforço próprio, não é esticando o cobertor do Estado para dar
agasalho a todo o maltrapilho que se resolve o problema. Daí é que vem o mal de
que nos acusam os nossos aliados: termos vivido acima das nossas possibilidades.
Já basta o Estado ter de acorrer a situações de emergência, como a do tufão
inclemente que arruinou bancos e seguradoras.
Por isso, como dizia,
acolhemos de braços abertos as propostas dos nossos abnegados credores, ou,
para melhor dizer, dos nossos fiéis aliados, que nos quiseram dar a mão numa
causa comum, com vista à construção da grande Casa Comum que todos almejamos.
Assim é que, com a
valiosa ajuda deles, empreendemos uma verdadeira revolução contra a “Revolução
dos Cravas”, desmembrando sem piedade o Estado-cobertor-para-toda-a-gente, cortando
na educação para todos, na saúde para todos, na cultura para todos, na
protecção na doença, no desemprego, na invalidez e na velhice, pois tudo isso é
despesa do Estado, gordura do Estado,
como nós costumamos dizer na nossa linguagem inovadora, porque, creia V. M.,
nós somos a geração mais criativa, mais original e mais destemida que apareceu
no nosso país, desde a grande era das Descobertas. Despedimos novamente a
juventude pelos quatro cantos do mundo, fernandos
mendes pintos à deriva, camões
errantes com seu estro épico, a levarem a grandeza da Pátria para longínquas
paragens - índias, chinas, bornéus, sumatras, américas, as nossas áfricas,
terras arábicas – naturalistas, matemáticos, phísicos, jovens de muitas engenharias, das artes e das letras,
todos cantando e espalhando por toda a parte
o peito ilustre da nossa grei.
Mas as nossas proezas
não se ficam por aqui, sendo de salientar, entre o mais, os nossos
empreendimentos no que diz respeito ao afeiçoamento da mão-de-obra à competição
dos grandes mercados internacionais, o que nós denominamos de flexibilidade, obra maior desta
revolução, que fica a dever-se a uma maior atractividade do custo da referida
mão-de-obra, pela provocação da sua queda acentuada, e a um espicaçamento
salutar da mão-de-obra que vamos lançando no desemprego, obrigando os
desempregados a empregarem-se de novo onde quer que seja e por qualquer preço.
Saiba V. M. que é tudo
isto e o muito mais que fica por dizer, que nós – e os nossos aliados credores
– chamamos de saída limpa, isto é, saída do Olimpo de todos aqueles –
classes obreiras, classes medianas, gente retirada do activo, indivíduos sem
emprego e os denominados “desprotegidos da sorte” - que a “Revolução dos
Cravas” tinha entronizado no etéreo das benesses e dos privilégios.
Chegamos a proclamar o
dia da saída limpa, aquele em que os
nossos aliados credores deram por desnecessária mais ajuda, exortando-nos a
seguir o rumo tomado, como o dia de todo o povo, o verdadeiro dia da Revolução.
Mas, infelizmente, há o
perigo de voltarmos atrás, pois ainda subsiste um nicho rebelde por olimpar: o tribunal da Magna Carta, que
resiste no seu bastião e teima em regressar ao passado dos “Cravas” com as suas
decisões anacrónicas sobre antigos direitos, garantias e privilégios,
fazendo-nos correr o risco de termos que pedir mais ajuda.
Creio ter explanado com
clareza, embora muito sucintamente, os passos principais da nossa fantástica
luta em direcção a uma saída limpa,
habilitando V. M., que vive do outro lado do Atlântico, a escrever limpamente
sobre as cousas graves do nosso país e das quais, com auxílio dos nossos
aliados, havermos de sair com deveras muita limpeza.
Creia-me seu fiel e
infatigável
Servidor
Jonathan Swift
(1665-1745)