03 abril 2016

 

Leituras atrasadas mas atuais

Atrasei-me, devido à época festiva, na leitura do jornal, mas não posso deixar de voltar ao tema "Lula", apesar do atraso e de ter sido já abordado pelo Artur Costa. Eu tenho de discordar em alguns pontos da análise do meu amigo Artur sobre a atuação do juiz Sérgio Moro. Na verdade, entendo que a escuta feita à Presidenta nada tem de ilegal. Foi uma escuta fortuita, não foi ela o alvo da interceção, mas sim Lula; se as afirmações de Dilma apareceram gravadas foi porque ela falou com o seu amigo. Estando a escuta do telemóvel de Lula autorizada judicialmente, nenhuma ilegalidade foi cometida. Quanto à divulgação da conversação entre os dois, a questão é bem mais complexa. Em todo o caso eu direi: o conteúdo da conversação é de tal forma ignóbil (prometer nomear Lula ministro, não para "ministrar", mas para fugir ao braço da justiça e da lei) que francamente acho que democraticamente é salutar a sua publicação. Francamente, os cidadãos brasileiros não têm o direito de saber como se cozinham impunidades ao mais alo nível do poder? Não têm o direito de conhecer o nível ético-político dos seus governantes? Falar de "desordem jurídica", invocar formalismos jurídicos não será excessivo num caso de tamanha gravidade? E a propósito de "desordem jurídica" não posso deixar de fazer um comentário ao artigo de Boaventura de Sousa Santos do passado dia 30 de março, já aqui comentado pelo Artur Costa, com ele concordando, mas querendo aditar algumas coisas... Já diversas vozes distintas da esquerda portuguesa se tinham elevado em defesa de Lula, como anteriormente de Sócrates, insurgindo-se contra as autoridades judiciárias que os “perseguem” e lançando todas as suspeições sobre os inquéritos criminais em curso. Mas o artigo de Boaventura de Sousa Santos, quer pela “teorização” que desenvolve em torno do “sistema judicial”, quer pelo prestígio do seu autor, merece uma reflexão. Começa por dizer que há trinta anos os “tribunais tinham uma função relativamente modesta na vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo liberalismo político moderno”, mas tudo mudou até aos nossos dias. E para essa mudança contribuíram “a crise de representação política que atingiu os órgãos de soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns impasses políticos em temas controversos, terem começado a ver o recurso seletivo aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político de certas decisões”. Daí surgiu o “ativismo judiciário” que tanto preocupa BSS. Os tribunais ganharam assim espaço por culpa dos órgãos eleitos, que entraram em crise (porquê?), da maior consciência dos cidadãos (ainda bem, não é?), e da “descarga” de responsabilidades por parte das elites políticas (sacanas!). Não tivesse nada disto acontecido e os tribunais continuariam adormecidos no seu cantinho, o seu lugar natural… Porém, esta visão das coisas é completamente anacrónica. O sistema político-constitucional vigente não é de forma alguma (e estranha-se que BSS não tivesse ainda dado conta disso) o do “liberalismo político moderno”, mas sim o do estado constitucional de direito, que chegou a Portugal com o 25 de Abril, que pôs no centro da vida política a constituição, uma constituição rígida, o que confere um novo vigor ao poder judicial, encarregado de fiscalizar o cumprimento da constituição, a legalidade dos atos da administração pública, e julgar da realização do catálogo de direitos fundamentais, que é diretamente aplicável, e portanto judicializável. Esta reconfiguração do sistema de poderes envolveu naturalmente um poder judicial independente (com um MP autónomo), garantia indispensável para a realização das suas tarefas. Uma independência que lhe permitiu (procurar) levar a sério a efetivação das suas competências nas diversas áreas, incluindo a penal. O alegado “ativismo judiciário”, que em Portugal teve em geral um desenvolvimento modesto infelizmente, resultou da assunção pelo poder judicial dos poderes que a Constituição lhe confere, não de qualquer usurpação de poderes… Porém, BSS, refugiado na sua conceção jacobina do poder, não pode compreender que os magistrados confrontem membros dos outros poderes do Estado (os eleitos…). Por isso ataca a operação Mãos Limpas, à qual acusa de abrir as portas a Berlusconi… Deveriam pois os magistrados italianos ter fechado os olhos a todo o sistema de corrupção montado pelo “arco de governação” italiano (democracia cristã + PSI) durante décadas… BSS não o diz expressamente, claro, mas resulta inequivocamente das entrelinhas… (Errou quem disse que a corrupção mina a democracia! Afinal, em Itália a corrupção sustentava a democracia, e depois vieram os magistrados complicar as coisas!... O combate à corrupção deve cessar quando chega aos titulares de cargos políticos…) Mas as maiores dores de BSS é com Lula. O sistema judicial brasileiro é acusado de provocar a “desordem jurídica” e pôr em perigo a democracia brasileira… Não é portanto o crónico e enraizado sistema de corrupção que é gravemente suspeito de envolver o sistema político-partidário que põe a democracia brasileira à beira do caos!!! É combater a corrupção que mina a democracia!!! Contudo, as dores de BSS são também (e fortes) com a justiça portuguesa. Reconhece, vá lá, que “há um inequívoco sinal de perda de impunidade de quem tem poder e dinheiro”. Mas logo acrescenta a suspeição de que há “seletividade” na in-vestigação criminal. A máxima dor de BSS é mesmo José Sócrates (e como é estranho o empenhamento na sua defesa…). E lança um aviso solene (e perverso): ou ele é acusado e condenado ou então a “justiça” portuguesa vai mesmo ao fundo… (Devem então os magistrados pugnar pela verdade e pela justiça, como estatutariamente lhes cabe, ou antes, perversamente, pela condenação a todo o transe?) E adianta desde já (e prevenindo a hipótese de condenação): “independentemente da culpabilidade que se venha provar”, “alguma relação deve haver” entre o processo e o facto de José Sócrates ter dito em 2005 que queria acabar com os privilégios dos magistrados judiciais!!! Portanto, mesmo que se venham a provar os factos e o “réu” (sic!) condenado, a motivação profunda dos magistrados não será a de perseguir crimes praticados pelo dito “réu”, mas apenas uma vingança mesquinha… (eu tendo a pensar que quem atribui intenções maldosas aos outros mais não faz do que confessar o que faria pessoalmente se estivesse naquelas situações…). Por último, e retomando o tema “seletividade”, BSS sugere uma indagação à atividade do MP (não indicando porém o meio), lançando uma suspeição generalizada sobre esse órgão, que será deliberadamente seletivo, insinua fortemente BSS, ou seja, infringindo o princípio da igualdade, que o deve orientar. Para sustentar essa “tese” cita uma série de casos avulsos, completamente diversos uns dos outros, sem qualquer rigor nem fundamento... Não adianta qualquer explicação porém para a alegada “seletividade”… Que interesse teria o MP nisso? Será que o MP está ao ser-viço de alguém? E quem no MP é responsável, a PGR? Ou haverá algum magistrado, ou não magistrado, na sombra a controlá-la? Algum poder oculto a manipulá-la? Qual? Não o diz BSS. Mas ao lançar a lama da insinuação sem provas, essa poderá fazer o efeito de ricochete e virar-se contra o emissor… Por fim, quero também fazer uma referência a um artigo ("Contra o muro") de Rui Tavares, de 21 de março no "Público" (mais uma vez peço esculpa pelo atraso...). Diz ele "As suspeitas sobre Lula não são propriamente avassaladoras - ocultação de posse de um apartamento que ele diz ter desistido de comprar e de um banal sítio de férias - e francamente ridículas, se pensarmos no habitual para a escala brasileira." Não reparou Tavares que esta afirmação é completamente "assassina" para a classe política brasileira e para o próprio Lula? Admitir complacentemente que é de fechar os olhos à "pequena" corrupção dos responsáveis políticos, que esta só é mesmo corrupção a partir de certo montante (qual?) não é a pior "ajuda" que se pode dar a Lula? Parafraseando Álvaro de Campos, direi: porra, é esta a esquerda portuguesa?





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