09 janeiro 2006

 

Política criminal e princípio da legalidade

Um dos maiores problemas que enfrenta uma lei como a que agora é proposta pelo Governo é sem dúvida a sua conciliação com o princípio da legalidade, ou melhor, da obrigatoriedade da acção penal. A questão é tanto mais importante quanto o preceito constitucional agora invocado para dar cobertura a esta lei de política criminal, o tal 219º, nº 1, na redacção de 1997, é o mesmo que, pela primeira vez, deu dignidade constitucional ao princípio da legalidade, o qual, vigorando há muito a nível de lei ordinária, nunca tinha recebido as honras constitucionais. O próprio texto do anteprojecto não dá lugar a dúvidas: não é possível isentar nenhum crime de procedimento criminal (al. c) do art. 2º).
Mas se é assim, então como conciliar esse comando com o estabelecimento de prioridades em matéria de investigação? No preâmbulo do anteprojecto, o legislador escora-se na ideia de que «nem todos os crimes acabam por ser punidos» para legitimar o estabelecimento de prioridades na investigação. Mas, se continua a ser obrigatória a perseguição de todos os crimes, é incongruente com o sistema aceitar que alguns (os “não prioritários”?) acabem por não ser investigados.
Uma primeira solução coerente com o princípio da legalidade seria investir no sistema, ou organizar melhor os meios, de forma a aumentar a sua produtividade (palavra mágica nos tempos que correm), em ordem a habilitá-lo a cumprir as suas obrigações.
Há ainda outras soluções congruentes e transparentes para enfrentar as dificuldades decorrentes do cumprimento do princípio da legalidade: a descriminalização e a amnistia. A segunda é um meio excepcional, de que não se pode abusar, mas é certamente uma solução de maior cobertura constitucional e de maior transparência e responsabilização políticas do que o estabelecimento de prioridades na investigação. A descriminalização seria obviamente o caminho mais correcto.
Uma lei como a que é proposta redunda, ao fim e ao cabo, em amnistias e descriminalizações encapotadas (isto é, não assumidas pela AR), relativamente aos crimes relegados para o “fundo da lista”. Acaba por ser o MP o responsável (ou responsabilizado) pela não perseguição desses crimes (ou desculpabilizado, conforme as conveniências das maiorias parlamentares conjunturais). Em qualquer caso, alguém que afinal não é responsável pela definição da política criminal. Difícil será sempre estabelecer até que ponto foram esgotadas as capacidades de investigação disponíveis. Mais um tema de controvérsia e eventualmente de conflito institucional.
São ínvios os caminhos procurados para o descongestionamento do sistema processual penal. Mas será mesmo isso que se procura?





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