17 abril 2006
Proposta para «rendez-vous» ministerial
ou de como devem comportar-se os nossos ministros e altos agentes da nossa Administração de modo que, a bem da informação geral e da transparência dos actos, tudo se passe «on public eyes».
Ainda não esmoreceram as ondas de choque provocadas pela polémica demissão do Director da Polícia Criminal. Já lá vai mais de uma semana e as gazetas ainda se não cansaram de comentar o incidente. Daqui tem surgido um clima de suspeição e de perturbação que não abona a estabilidade e a fiabilidade das instituições do nosso Reino, assim como a limpidez da imagem do «feliz governo que nos governa». Recordemos aligeiradamente, a pinceladas largas, o que se passou. O nosso ministro do Reino para os assuntos da Justiça, que tão corajosamente tem levado a cabo uma obra de remodelação completa do sector, baseado em sólidos estudos científicos e ousados projectos de eficiência e produtividade, segundo o princípio de que uma investigação só é eficiente quando leva a uma acusação e esta a uma condenação, convocou o Director da Polícia Criminal para um «rendez-vous» no seu gabinete. Do que lá se passou ninguém sabe. O que se sabe, porque esse dado é abonado pela realidade cronológica, é que, ao fim de um quarto de hora, o Director da Polícia Criminal estava fora do gabinete. Os gazeteiros imediatamente se precipitaram sobre ele, registando com aparos ruidosos o que dele ouviam, com uma das mãos em concha sobre o pavilhão do ouvido. Disse então o Director da Polícia Criminal que tinha apresentado a sua demissão. O facto nada teria de espantoso, evidentemente, não fora a circunstância de o ministro do Reino para os assuntos da Justiça ter dito aos mesmos gazeteiros que tinha demitido o Director da Polícia Criminal, antes que ele tivesse formulado qualquer pedido de demissão. O nosso Reino, sempre tão cioso da verdade nua e crua, porque essa, digam lá o que disserem, é uma das características inconfundíveis da nossa idiossincrasia, ficou assaz perplexo. Quem teria razão? O nosso muito ilustre Director da Polícia Criminal ou o nosso muito ilustre ministro do Reino? Ora, vá-se lá saber! Os gazeteiros muito se têm esfalfado na busca da verdade, como é seu timbre, mas em vão. Certo, certo é que o tempo que levou o «rendez-vous» não dava para mais do que tirar um papel do bolso, fosse o Director da Polícia, fosse o ministro do Reino.
Ora, para além de prejudicarem a lisura que deve nortear o comportamento dos altos agentes da Administração do Reino e dos nossos governantes, cenas como esta prestam-se às mais grosseiras deturpações e até a explorações grotescas que empanam a imagem que queremos projectar além-fronteiras. De maneira que, muito modestamente, se me fosse permitido, na qualidade de escriba preocupado com os problemas do nosso povo e com a imagem do nosso Reino, eu faria uma proposta para futuro. A qual consistiria no seguinte: em situações como a que vai narrada, o «rendez-vous» deveria ser convocado para o Terreiro do Paço, se possível com bom tempo, o que hoje, dados os avanços da ciência, não é difícil de prever. O povo juntar-se-ia à volta do palco montado para o efeito. Os protagonistas da acção encontrar-se-iam, cumprimentar-se-iam desportivamente, sob a vigilância de um árbitro imparcial, e só depois de esse árbitro dar o sinal de partida, é que seria lícito cada um deles levar a mão ao bolso. Aquele que primeiro tirasse o papel com a demissão pedida ou imposta e a chapasse mais depressa no rosto do adversário, ganharia, e o árbitro proclamaria a vitória. Com o que todos ficariam satisfeitos e tudo sairia muito mais limpo.
Jonathan Swift ( 1665 – 1745)
Ainda não esmoreceram as ondas de choque provocadas pela polémica demissão do Director da Polícia Criminal. Já lá vai mais de uma semana e as gazetas ainda se não cansaram de comentar o incidente. Daqui tem surgido um clima de suspeição e de perturbação que não abona a estabilidade e a fiabilidade das instituições do nosso Reino, assim como a limpidez da imagem do «feliz governo que nos governa». Recordemos aligeiradamente, a pinceladas largas, o que se passou. O nosso ministro do Reino para os assuntos da Justiça, que tão corajosamente tem levado a cabo uma obra de remodelação completa do sector, baseado em sólidos estudos científicos e ousados projectos de eficiência e produtividade, segundo o princípio de que uma investigação só é eficiente quando leva a uma acusação e esta a uma condenação, convocou o Director da Polícia Criminal para um «rendez-vous» no seu gabinete. Do que lá se passou ninguém sabe. O que se sabe, porque esse dado é abonado pela realidade cronológica, é que, ao fim de um quarto de hora, o Director da Polícia Criminal estava fora do gabinete. Os gazeteiros imediatamente se precipitaram sobre ele, registando com aparos ruidosos o que dele ouviam, com uma das mãos em concha sobre o pavilhão do ouvido. Disse então o Director da Polícia Criminal que tinha apresentado a sua demissão. O facto nada teria de espantoso, evidentemente, não fora a circunstância de o ministro do Reino para os assuntos da Justiça ter dito aos mesmos gazeteiros que tinha demitido o Director da Polícia Criminal, antes que ele tivesse formulado qualquer pedido de demissão. O nosso Reino, sempre tão cioso da verdade nua e crua, porque essa, digam lá o que disserem, é uma das características inconfundíveis da nossa idiossincrasia, ficou assaz perplexo. Quem teria razão? O nosso muito ilustre Director da Polícia Criminal ou o nosso muito ilustre ministro do Reino? Ora, vá-se lá saber! Os gazeteiros muito se têm esfalfado na busca da verdade, como é seu timbre, mas em vão. Certo, certo é que o tempo que levou o «rendez-vous» não dava para mais do que tirar um papel do bolso, fosse o Director da Polícia, fosse o ministro do Reino.
Ora, para além de prejudicarem a lisura que deve nortear o comportamento dos altos agentes da Administração do Reino e dos nossos governantes, cenas como esta prestam-se às mais grosseiras deturpações e até a explorações grotescas que empanam a imagem que queremos projectar além-fronteiras. De maneira que, muito modestamente, se me fosse permitido, na qualidade de escriba preocupado com os problemas do nosso povo e com a imagem do nosso Reino, eu faria uma proposta para futuro. A qual consistiria no seguinte: em situações como a que vai narrada, o «rendez-vous» deveria ser convocado para o Terreiro do Paço, se possível com bom tempo, o que hoje, dados os avanços da ciência, não é difícil de prever. O povo juntar-se-ia à volta do palco montado para o efeito. Os protagonistas da acção encontrar-se-iam, cumprimentar-se-iam desportivamente, sob a vigilância de um árbitro imparcial, e só depois de esse árbitro dar o sinal de partida, é que seria lícito cada um deles levar a mão ao bolso. Aquele que primeiro tirasse o papel com a demissão pedida ou imposta e a chapasse mais depressa no rosto do adversário, ganharia, e o árbitro proclamaria a vitória. Com o que todos ficariam satisfeitos e tudo sairia muito mais limpo.
Jonathan Swift ( 1665 – 1745)