02 abril 2006

 

«Salvar o casamento»

O Pedro Vaz Patto generosamente enviou mais um artigo para o Sine Die (cujo título referi em epígrafe) que tenho o maior gosto em publicar, até por que me parece que pode renovar a discussão neste espaço sobre um tema que merece uma reflexão que vá além da espuma dos dias:

«Há quem diga que a redefinição do conceito jurídico do casamento, de modo a nele incluir uniões de pessoas do mesmo sexo, se impõe como exigência constitucional do princípio da igualdade, sobretudo depois de, no artigo 13º da Lei Fundamental, se ter introduzido a “orientação sexual” como exemplo de um dos fundamentos que pode dar origem a discriminações atentatórias desse princípio. Poderia, desse modo, uma modificação de tão largo alcance cultural resultar, como já sucedeu noutros países (no Canadá e na África do Sul), de uma decisão judicial, sem intervenção do poder legislativo, ou até contra o sentir maioritário da população.
Mas será assim?
Sempre se tem afirmado que o princípio da igualdade não veda (e pode até impor em algumas circunstâncias) tratamentos diferenciados: proíbe que se trate de forma desigual o que é objectivamente igual, mas não que se trate de forma desigual o que é objectivamente desigual. Se o tratamento diferenciado se funda em motivos objectivos, racionais e justos, e não subjectivos, arbitrários ou discriminatórios, não contraria o princípio da igualdade. Será discriminatório negar a uma pessoa com tendências homossexuais o acesso a um emprego ou a um benefício social quando tal não tem fundamento objectivo ou racional. Mas não poderá dizer-se que não tem fundamento objectivo ou racional a não equiparação das uniões homossexuais à união entre homem e mulher no âmbito dos regimes do casamento e da adopção. Trata-se de situações objectivamente desiguais que, precisamente na perspectiva da natureza e das finalidades destes institutos, justificam um tratamento diferenciado.
Não se trata, desde logo, de alargar ou restringir direitos, mas de definir conceitos. Trata-se de “chamar as coisas pelos seus nomes”. Não se trata de proibir ninguém de casar, mas de definir o que é o casamento. Como já se afirmou ironicamente a este respeito, quando se distingue entre uma “maçã” e uma “laranja” não se está a violar o princípio da igualdade entre os “frutos”.
Uma primeira verdade a salientar é a de que o casamento é uma instituição milenar que precede o Estado, não é uma criação deste, nem dos mais ou menos iluminados legisladores. O Estado limita-se a reconhecê-la. Que o Estado pretenda forjar tal instituição milenar só pode ser sinal de uma tentação totalitária de ideológica “engenharia social”.
Quando os nossos constituintes de 1976 reconheceram tal instituição tinham, sem margem para dúvidas, em mente a noção de casamento que tem atravessado os séculos e as culturas mais diversificadas. Se fosse possível a redefinição arbitrária de conceitos, nada seria seguro, qualquer afirmação constitucional poderia ser distorcida e todo o edifício constitucional poderia ser subvertido. Poder-se-ia negar o direito à vida, redefinindo o conceito de “vida”, ou a proibição da tortura, redefinindo a noção de “tortura”.
Dir-se-á que, neste aspecto, não se trata de uma redefinição arbitrária e que o elemento histórico da interpretação não é decisivo e pode ceder diante de uma interpretação actualista que corresponda a uma evidente evolução social e cultural. Seria assim se estivéssemos perante um consenso pacífico e indiscutível (não certamente uma questão “fracturante”), o que não é manifestamente o caso. Trata-se, antes, de aspirações de minorias vanguardistas com um poder de influência muito superior à sua real dimensão. A oposição à alteração legislativa espanhola deu origem a petições e manifestações com uma expressão numérica sem paralelo. Procura evitar-se a sujeição destas questões a referendo. Sempre que tal se verificou (nos Estados Unidos) a rejeição popular de alterações à definição do casamento foi clara. No primeiro ano de vigência da lei espanhola (quando seria de esperar um número particularmente elevado, por corresponder à legalização de situações que perduram desde há muito tempo), o número de “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo pouco superou os trezentos, contra as anunciadas dezenas de milhar.
Não podemos falar, pois, de uma evolução semântica correspondente a uma espontânea e tranquila evolução cultural, mas antes de uma subversiva manipulação de linguagem, também ela de laivos totalitários (faz recordar a “novilíngua” do famoso romance de George Orwell 1984 ).
Tem-se dito, porém, que outras instituições milenárias (a família fundada na supremacia masculina, por exemplo) têm caducado com o progresso da civilização. Mas o casamento não pode ser equiparado a qualquer outra instituição sujeita a caducidade. Não é apenas um produto cultural, exprime uma realidade natural. Não é, pois, por acaso ou coincidência que tem persistido ao longo dos séculos e que é comum às culturas mais diversificadas.
Mesmo assim, há que verificar se tem um fundamento objectivo e racional o tratamento diferenciado do casamento como união entre homem e mulher e uma união entre pessoas do mesmo sexo.
O reconhecimento e a promoção do casamento e da família pelo Estado não tem a ver com o privilégio de uma opção de estilo de vida privada entre outras possíveis, mas com a função social dessas instituições. Também não se trata de discriminar um tipo de afectos em relação a outros («o Estado não tem de dizer quem ama quem» - ouve-se dizer). Há outro tipo de relações afectivas sem expressão sexual (entre irmãos ou amigos) que não têm reconhecimento social e jurídico específico porque se situam no âmbito da privacidade, onde deverão também situar-se as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
E a função social do casamento e da família supõe a dualidade sexual.
O reconhecimento social e jurídico do casamento, e a protecção que daí decorre, ligam-se à função de fundamento da família como célula base da sociedade. É, desde logo, a família que assegura a perenidade e renovação da sociedade, gerando, a partir da união entre homem e mulher (haverá poucas verdades tão evidentes e objectivas como esta), novas vidas. Essa renovação passa pela geração biológica, mas também pela educação das crianças e dos jovens. A formação da pessoa exige o contributo insubstituível das dimensões masculina e feminina, que só em conjunto compõem a riqueza integral do humano.
Contra esta ideia, tem-se afirmado que o casamento não deixa de ter reconhecimento social quando os cônjuges não podem, ou não querem, ter filhos. É verdade. Podemos dizer que se trata da excepção que confirma a regra. O legislador, ao reconhecer e regular o casamento, tem em conta, como em muitos outros casos, aquilo que é a regra, não a excepção. Na generalidade dos casos, os cônjuges estão abertos à vida e se assim não fosse estaria comprometido o futuro da sociedade, facto que o Estado e o legislador certamente não ignoram.
De qualquer modo, mesmo nos casos de casais sem filhos o reconhecimento social do casamento desempenha uma função social que não pode ser desempenhada por uniões entre pessoas do mesmo sexo. Esse reconhecimento não diz primordialmente respeito à atribuição de um conjunto de direitos e deveres, mas ao quadro simbólico de referência da sociedade. Através desse reconhecimento, de algum modo se “presta homenagem” à riqueza da dualidade sexual na perspectiva social do bem comum. A sociedade estrutura-se a partir dessa dualidade, como salientou o político socialista francês Lionel Jospin quando afirmou a evidência de que a sociedade se divide entre homens e mulheres, não entre homossexuais e heterossexuais. Muito antes, já o tinha afirmado o Génesis («Deus os criou Homem e Mulher»), evidenciando não só uma intuição característica da cultura judaico-cristã onde nos integramos, mas uma realidade natural que também está presente nos relatos fundadores das culturas mais diversificadas. A diferença estrutural entre homem e mulher não é fruto do acaso (como se pudesse deixar de ser assim), mas corresponde a um desígnio natural que faz dessa diferença uma ocasião de enriquecimento recíproco, que apela à unidade e comunhão a partir da diversidade. É isto mesmo que exprime a instituição do casamento, que as diferenças entre homem e mulher não são uma ocasião de conflito, mas de colaboração e enriquecimento recíprocos. E é assim em todos os domínios da vida social, onde a dualidade sexual deve ser sempre encarada como uma riqueza, uma ocasião não de conflito, mas de colaboração. É esta “unidade na diversidade” que a instituição do casamento, pelo simples facto de existir, “proclama”.
Por outro lado, como salienta o psicanalista francês Tony Anatrella, «é a partir desta diferença fundamental que todas as outras se tornam possíveis, que o indivíduo acede ao sentido do outro e se socializa». É, pois, o próprio sentido da alteridade em geral que o casamento como modelo de referência nos ajuda a descobrir.
Tudo isto desaparece quando o conceito de casamento se esvazia e se torna um recipiente onde tudo cabe. Onde poderá também caber – como também já se defende – a poligamia, para ir de encontro a realidades que em sociedades multiculturais têm expressão numérica até superior à das uniões de pessoas do mesmo sexo, ou para satisfazer os direitos de pessoas de tendência bissexual, uma outra “orientação sexual” que não pode dar origem a discriminações. Quando se descaracteriza de forma tão grave uma instituição, não sabemos até onde nos levará a derrocada. E com isso desapareceria também a “homenagem” à dignidade da pessoa com um valor único e irrepetível que a instituição do casamento monogâmico sempre tem representado nas culturas de raiz cristã.
Perde sentido a afirmação política e jurídica de que o Estado reconhece e promove a família como célula da sociedade quando este conceito se esvazia. É isto que está em jogo e confere a máxima relevância à questão da definição jurídica do casamento.
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Pedro Vaz Patto





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