17 maio 2006
Onde se fala dos professores, dos Mestres e do direito penal
Há professores que nos marcam positiva ou negativamente, que propiciam ou tolhem de forma indelével o nosso desenvolvimento, que constituem um pilar fundamental das nossas vidas ou que passam por nós sem darmos pela existência deles, que são imprescindíveis para a nossa formação ou que poderíamos dispensar como a folha morta de um calendário que arrancamos sem remorso. Acho que não exprimo uma personalidade particularmente acrimoniosa se disser que muitos dos professores que tive foram nefastos; muitos outros perfeitamente dispensáveis, embora rodeados de auréola, e muito poucos que realmente me tocaram. Não tenho a reverência beata dos «Mestres», e recuso-me quase sempre a escrever essa palavra. Mestres, mestres são mais raros do que um metal precioso. Mas há pessoas, tipo bacharel de Eça de Queirós, que topam Mestres no caminho com a facilidade com que se topam pedras na rua. Cá para mim digo que são uns felizardos e que a sua existência é uma espécie de Paraíso rodeado de sacrossantas figuras de Mestres.
Vem isto a propósito do professor Figueiredo Dias. O professor Figueiredo Dias passou pela minha vida universitária um pouco meteoricamente. Na altura, era ainda muito novo e dava um curso de Processo Penal que tinha a natureza de «semestral», ou seja, o equivalente aí a uns três meses de aulas. Daí que eu tenha começado por dizer que passou pela minha vida um pouco meteoricamente. Porém, as suas aulas eram incisivas, e a impressão que me deixou não foi de modo nenhum evanescente. Por outro lado, numa época de mordaça como era aquela, já se desenhava nitidamente o seu espírito crítico numa área tão sensível, do ponto de vista dos direitos fundamentais do cidadão, como a do processo penal. Mas foi sobretudo depois da minha passagem pela Universidade e ao longo dos anos que eu fui sedimentando a ideia de que ele é efectivamente um Mestre. A sua visão do direito penal e do processo penal de que me fui impregnando ao longo do tempo é pioneira e mais próxima, muito mais próxima do que eu imaginava, da formação humanista que fui adquirindo desde os tempos da Universidade, mas sobretudo à margem da instituição universitária. Uma visão que diria das mais «progressistas», se este adjectivo não estivesse tão sobrecarregado de ambiguidade nos tempos que correm, e não só de ambiguidade como também de suspeição. Uma visão que tem vindo a saldar-se num longo trabalho de «descontrução» de um discurso penalista tributário de concepções teológicas e moralistas.
O professor Figueiredo Dias foi pioneiro nesse trabalho de elaboração de um discurso penal e processual penal à escala humana, cortado de outras referências que não sejam as do próprio homem como ser de relação e como ser em devir. Não sei se isto foi verdadeiramente apercebido sequer por todos aqueles que trabalham diariamente com o direito.
Estas palavras ocorrem-me por causa do debate no Museu de Serralves, a que não pude assistir, e que veio noticiado no «Público» do passado dia 11. Como tantas vezes tem acontecido em outras ocasiões, as suas palavras conferem um sentido exaltante, pleno de um compromisso com a «inquietante aventura» humana, que para tantos de nós está implicada na escolha de uma carreira de penalista. Por mim, não tenho dúvida de que, dentro de todos os condicionalismos em que o acaso também desempenha um papel fundamental, a opção que acabei por fazer, enveredando pela área do direito penal, tem a ver com tudo isso. Para outros, a opção inversa terá a ver com a «fuga» a essa implicação, que tem os seus custos, as suas incomodidades e até as agonias próprias de quem é obrigado a mergulhar de uma forma por vezes tão visceral na condição humana. Sem transcendência alguma e com o sentimento de partilhar, em toda a sua precariedade, essa condição. Nesse sentido, pode falar-se, como Figueiredo Dias, na beleza do direito penal e na sua «sedução extraordinária», que é dar-nos «a ilusão de que se está a sondar a condição humana». Beleza e sedução tanto maiores, quanto nos faz confrontar (e isso por vezes é tão esquecido pelas tentações de padronização com que encobrimos a nossa incapacidade ou mediocridade) com a irredutível singularidade de cada pessoa: «O penalista fica na mão com uma pessoa: o criminoso. Aí é toda a condição humana, a pessoa em todos os condicionalismos».
Vem isto a propósito do professor Figueiredo Dias. O professor Figueiredo Dias passou pela minha vida universitária um pouco meteoricamente. Na altura, era ainda muito novo e dava um curso de Processo Penal que tinha a natureza de «semestral», ou seja, o equivalente aí a uns três meses de aulas. Daí que eu tenha começado por dizer que passou pela minha vida um pouco meteoricamente. Porém, as suas aulas eram incisivas, e a impressão que me deixou não foi de modo nenhum evanescente. Por outro lado, numa época de mordaça como era aquela, já se desenhava nitidamente o seu espírito crítico numa área tão sensível, do ponto de vista dos direitos fundamentais do cidadão, como a do processo penal. Mas foi sobretudo depois da minha passagem pela Universidade e ao longo dos anos que eu fui sedimentando a ideia de que ele é efectivamente um Mestre. A sua visão do direito penal e do processo penal de que me fui impregnando ao longo do tempo é pioneira e mais próxima, muito mais próxima do que eu imaginava, da formação humanista que fui adquirindo desde os tempos da Universidade, mas sobretudo à margem da instituição universitária. Uma visão que diria das mais «progressistas», se este adjectivo não estivesse tão sobrecarregado de ambiguidade nos tempos que correm, e não só de ambiguidade como também de suspeição. Uma visão que tem vindo a saldar-se num longo trabalho de «descontrução» de um discurso penalista tributário de concepções teológicas e moralistas.
O professor Figueiredo Dias foi pioneiro nesse trabalho de elaboração de um discurso penal e processual penal à escala humana, cortado de outras referências que não sejam as do próprio homem como ser de relação e como ser em devir. Não sei se isto foi verdadeiramente apercebido sequer por todos aqueles que trabalham diariamente com o direito.
Estas palavras ocorrem-me por causa do debate no Museu de Serralves, a que não pude assistir, e que veio noticiado no «Público» do passado dia 11. Como tantas vezes tem acontecido em outras ocasiões, as suas palavras conferem um sentido exaltante, pleno de um compromisso com a «inquietante aventura» humana, que para tantos de nós está implicada na escolha de uma carreira de penalista. Por mim, não tenho dúvida de que, dentro de todos os condicionalismos em que o acaso também desempenha um papel fundamental, a opção que acabei por fazer, enveredando pela área do direito penal, tem a ver com tudo isso. Para outros, a opção inversa terá a ver com a «fuga» a essa implicação, que tem os seus custos, as suas incomodidades e até as agonias próprias de quem é obrigado a mergulhar de uma forma por vezes tão visceral na condição humana. Sem transcendência alguma e com o sentimento de partilhar, em toda a sua precariedade, essa condição. Nesse sentido, pode falar-se, como Figueiredo Dias, na beleza do direito penal e na sua «sedução extraordinária», que é dar-nos «a ilusão de que se está a sondar a condição humana». Beleza e sedução tanto maiores, quanto nos faz confrontar (e isso por vezes é tão esquecido pelas tentações de padronização com que encobrimos a nossa incapacidade ou mediocridade) com a irredutível singularidade de cada pessoa: «O penalista fica na mão com uma pessoa: o criminoso. Aí é toda a condição humana, a pessoa em todos os condicionalismos».