12 maio 2006

 

«Os representantes do povo parecem por vezes imaginar que são o próprio povo»

Pego na oportuna "revisita" proposta por Paulo Dá Mesquita à Constituinte e concretamente nas palavras do deputado constituinte do PS Sousa Pereira, ao proclamar que, em democracia, só os "eleitos do Povo e mais ninguém" têm o poder de deliberação própria e independente e que as magistraturas têm de ficar submetidas a um qualquer controlo do executivo. Uma afirmação absolutamente emblemática da cultura jacobina que enformava a advocacia oposicionista e que foi transportada para a Constituinte pela mão do PS, que acabou por ceder em grande medida às posições contrárias do então PPD.
Mas a cultura jacobina manteve-se com enorme vigor no PS até hoje, qualquer que seja a "sensibilidade" conjunturalmente dominante. Porventura, com Alberto Costa, o jacobinismo terá atingido um dos pontos mais altos (talvez só superado no consulado de Ferro Rodrigues).
Não só o PS sofre desse mal. O BE comunga da mesma perspectiva: o poder dos "eleitos do povo" não pode ser limitado por quem não é eleito.
O jacobinismo é um traço característico do constitucionalismo francês, que se tem ali mantido vigoroso ao longo do tempo, por exemplo através do estatuto de impunidade do PR (e Chirac tem sabido bem aproveitar-se dele!) e do foro especial para os titulares de cargos políticos. A ideia de que parte, que é congénita ao constitucionalismo francês, é a de que o povo exprime-se só através dos seus representantes, que estes são a verdadeira e única voz do povo e que portanto o parlamento, e também o PR, quando eleito directamente, não podem ser limitados nos seus poderes por titulares de cargos públicos que não emanem directamente da vontade popular. O "coração" da democracia é o parlamento, aí ouve-se bater o coração do povo.
De perspectiva oposta partiu o constitucionalismo americano: a da desconfiança nos representantes e portanto da necessidade de limitar e circunscrever os poderes do órgão legislativo, para defesa da Constituição, defesa essa entregue ao poder judicial. Em contraste com a centralidade do parlamento no modelo francês, o constitucionalismo americano proclama a separação e equilíbrio de poderes como única forma de salvaguardar o poder do povo.
Vale bem a pena uma leitura desse clássico da literatura constitucional americana que é O Federalista, que foi traduzido por Viriato Soromenho-Marques e publicado por Edições Colibri em 2003. Recomenda-se especialmente (e perdoem-me o tom didáctico) os artigos nº 48 e 51, de James Madison e 71 e 77 de Alexander Hamilton.
Algumas breves transcrições: «é contra a ambição empreendedora desse departamento (o legislativo) que o povo deve orientar toda a sua desconfiança e exaurir todas as suas precauções» (nº 51); (citando Jefferson) «De pouco nos vale que eles (os representantes) sejam escolhidos por nós. Um despotismo electivo não foi o governo pelo qual lutámos, mas sim um que não somente deveria ser fundado em princípios livres, mas no qual os poderes do governo deveriam ser de tal modo divididos e equilibrados entre os vários corpos de magistratura que nenhum pudesse transcender os seus limites legais, sem ser eficazmente reprimido e restringido pelos outros.» (nº 51); «A mesma regra que nos ensina a justeza de uma partilha entre os vários ramos do poder ensina-nos também que essa partilha deve ser estruturada de maneira a tornar uns independentes dos outros. Com que finalidade se separa o executivo ou o judicial do legislativo, se tanto o executivo como o judicial forem constituídos de tal maneira que ficam na absoluta dependência do legislativo? Uma separação desse tipo tem de ser meramente formal e incapaz de produzir os fins para que foi estabelecida. Uma coisa é estar subordinado às leis, outras estar dependente da assembleia legislativa. A primeira é compatível com os princípios fundamentais da boa governação, a segunda viola-os; e, sejam quais forem as formas da Constituição, junta todo o poder nas mesmas mãos. Em governos puramente republicanos, essa tendência é quase irresistível. Os representantes do povo, numa assembleia popular, parecem por vezes imaginar que são o próprio povo, e traem fortes sintomas de impaciência e aversão pelo mínimo sinal de oposição venha de que quadrante vier; como se o exercício dos direitos respectivos, quer pelo executivo quer pelo judicial, fosse uma violação do seu privilégio e um ultraje à sua dignidade.» (nº 71). Palavras premonitórias de mais de séculos de experiência parlamentar.
A diferença estrutural entre os dois sistemas assenta porventura nisto: na perspectiva francesa, os representantes do povo são o próprio povo (e por isso ninguém lhes pode ir à mão), nisso se traduz o jacobinismo; na perspectiva americana, os representantes não se confundem com os representados e por isso estão necessariamente sujeitos ao escrutínio dos outros poderes, que também são poderes delegados pelo povo; o poder legislativo não tem, assim, mais legitimidade que os outros, tem exactamente a mesma.
O constitucionalismo americano sofreu uma grande erosão ao longo dos seus 250 anos de existência, mas a distinção entre representantes e povo e a força e independência do poder judicial têm constituído barreiras sólidas até agora contra as derrapagens autoritárias que por vezes acontecem naquele país, como é o caso dos tempos que correm.





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