02 junho 2006

 

A sala de audiências

Na semana passada o Ministro da Justiça referiu-se ao posicionamento do Ministério Público na sala de audiências para advogar a sua colocação em plano inferior ao dos juízes e paralelo ao dos advogados (estou a citar de cor, a ideia era esta aproximadamente).
Postas as coisas nestes exactos termos, a "ideia" tenderá a ser vista como (mais uma) medida punitiva contra o MP (e ninguém dirá que não era esse o objectivo principal do seu autor...). Contudo, não é esse o único, nem porventura o principal, problema que a nossa sala de audiências contém.
Lembrei-me então de trazer para este espaço uma reflexão escrita em 2000 e que por motivos vários nunca publiquei. Aqui a deixo, efectuados alguns cortes para encurtar e tornar o texto mais legível na blogosfera.


Para a democratização da sala de audiências

A sala de audiências é, de todo o espaço judiciário, o segmento mais marcado pela influência de uma visão autoritária da justiça, pois é o lugar central do exercício do poder. Aí, a arquitectura, a decoração da sala e a própria ritualização dos actos, serão elementos importantes da administração de uma justiça autoritária: na distribuição dos espaços, com a desigualdade de planos entre acusação e defesa, e a “humilhação” do acusado no “banco dos réus”; na decoração, com a representação de cenas de batalhas e outras cenas históricas quase sempre de conteúdo intimidatório, viradas que estão “para baixo”, e também de alegorias ferozes da justiça.
A sala de audiências dos nossos tribunais está concebida como um espaço de intimidação pessoal do acusado e onde existe um desequilíbrio notório em desfavor da defesa relativamente à parte contrária, o ministério público. A sala de audiências condensa toda uma concepção que nos orienta desde a porta do palácio da justiça: a da justiça/Thémis, a justiça cega e guerreira, a justiça que acima de tudo quer infundir respeito e temor a todos indistintamente, e não apenas julgar e proteger quem a procura em demanda da palavra justa que restaure a paz jurídica.
E se o 25 de Abril modificou a arquitectura judiciária, já quanto à sala de audiências, não se pode dizer que tenha trazido qualquer alteração significativa relativamente ao modelo anterior.
Lamentavelmente pouca atenção se tem prestado a este tema, como se a cena judiciária, o espaço em que se administra a justiça, fosse indiferente para o exercício da função de julgar.
As características da sala de audiências actual são as seguintes: separação da sala em duas zonas, uma para o público, a outra para o tribunal e restantes intervenientes processuais; diferenciação de planos entre o tribunal e o ministério público, por um lado, e os advogados, por outro, e ainda entre a bancada destes e o pavimento da sala; confinamento do réu dentro de uma «teia» (o «banco dos réus»).
Esta hierarquia de planos, discriminando a defesa em benefício da acusação, e o encerramento do réu no seu «banco» exprimem em toda a sua crueza (ou crueldade) quer o autoritarismo da cena e do acto, quer o pré-juízo de culpabilidade que envolve o réu, «degradado» a uma posição cénica humilhante de «pré-condenado», mau grado ainda gozar da presunção de inocência.
Várias ideias-força devem, a meu ver, guiar a concepção da sala de audiências (e vou referir-me exclusivamente à audiência penal). Desde logo, a laicidade. Não apenas no sentido de ausência de referências de índole religiosa (como os crucifixos), que a I República baniu dos tribunais, como também as alusões ideológicas, disfarçadas de referências “patrióticas”, com que o Estado Novo povoou as salas que construiu. Da mesma forma, a iconografia da Justiça deverá ser repensada, em ordem a eliminar o acima referido carácter “terrorista” com que ela é representada. Em suma, a sala de audiências deve ser um espaço sóbrio, neutro. Essa sobriedade não deve, porém, prejudicar um aspecto essencial, que é a funcionalidade. Este aspecto liga-se com outro, que é a solenidade.
A audiência não é uma “reunião de trabalho”, um encontro informal entre partes adversas. A audiência é um debate sujeito a regras rigorosas, desenrolando-se num espaço e num tempo próprios. A audiência tem um ritual específico, que não é apenas, nem sequer sobretudo, pompa e circunstância, mas sim uma sábia distribuição do direito à palavra por todos os sujeitos processuais, em ordem a habilitar o juiz a proferir a palavra final – a que dita a justiça do caso. O rito processual da audiência (o seu cerimonial) é uma garantia imprescindível dos direitos das partes e, dessa forma, da realização da justiça. A ritualização processual é a redução do conflito subjacente aos limites de uma luta igual, em que vão ouvir-se os argumentos da razão, e não os da força.
Essa ritualização relaciona-se intimamente com a solenidade, e historicamente foi adquirindo aspectos diversos consoante as culturas judiciárias. É universalmente utilizado um traje profissional para magistrados e advogados, e essa «tradição» não constrange de nenhuma forma a realização de uma cerimónia de índole genuinamente democrática. O traje simultaneamente investe e identifica o papel de cada um na cena perante o público, o que aliás é importante para a clarificação dos seus poderes, dos seus deveres, do seu estatuto.
Um aspecto ligado a este é o da distribuição e hierarquia dos lugares. Quer no plano simbólico, quer no funcional, parece inevitável a centralidade e a proeminência do lugar do juiz. Ele é o presidente da cerimónia e é ele quem vai decidir. Ele está acima das partes e equidistante delas. Ele está naturalmente num lugar mais alto e central.
As partes, além de equidistantes do juiz, devem situar-se no mesmo plano. Donde, inquestionavelmente, o ministério público não pode conservar o plano proeminente que sempre foi o seu na sala de audiências portuguesa, pois na audiência, e embora mantendo o seu estatuto de órgão de justiça (não sendo, portanto, "advogado do Estado" e, muito menos, "advogado do Governo", porque o nosso processo penal não é um puro processo de partes) que lhe impõe sempre um dever de imparcialidade e objectividade idêntico ao do juiz, ele é aí sobretudo uma das partes em litígio, aquela que formulou a acusação, a qual, é certo, não é obrigado a defender na alegação final, mas que tem o dever funcional de explorar em todas as suas virtualidades em ordem ao seu sucesso. Em síntese, os princípios do acusatório e da igualdade das partes impõem uma estrita igualdade de direitos na audiência entre acusação e defesa, e consequentemente um posicionamento igual na cena judiciária.
Mas o arguido, onde colocá-lo? Ao lado do seu advogado, integrando a bancada da defesa, como no processo civil? Ou no tradicional “banco dos réus”?
Diga-se desde já com toda a clareza que só a primeira solução se afigura compatível com o princípio da presunção de inocência e com o princípio da igualdade de armas, com o processo acusatório, em suma. Na verdade, a colocação do arguido no clássico “banco”, completamente rodeado pela “teia”, confina-o a um espaço fechado, encerra-o num espaço que simbolicamente antecipa o espaço prisional. O “banco dos réus” é um lugar submetido à vigilância do tribunal e à observação do público, degradando o arguido à condição de objecto do processo. Por outro lado, o processo acusatório faz do arguido uma parte, o verdadeiro adversário do ministério público na audiência. Por isso, o arguido deve estar ao lado do seu advogado, formando uma única bancada, situada em frente da do ministério público. Só assim haverá igualdade de armas na sua plenitude. Por outro lado, só assim o arguido terá porventura condições para uma defesa eficaz e sem limitações. É que, para articular devidamente a defesa com o seu advogado, o arguido deverá poder estar permanentemente em contacto com ele, transmitindo-lhe informações que aquele não possua e que poderão ser essenciais para a instância das testemunhas e mesmo para a preparação das alegações orais finais.
É claro que o arguido é não só um sujeito processual, como também um meio de prova, devendo submeter-se ao interrogatório do juiz logo no início da audiência, não se podendo furtar às respostas sobre a identidade pessoal, e tendo o direito de prestar declarações, nessa altura como em qualquer momento da audiência, sobre o objecto do processo. Enquanto meio de prova, o arguido não pode usufruir da sua posição «cénica» de parte. Quando prestar declarações, ele deverá deslocar-se para o lugar destinado àqueles que prestam declarações perante o tribunal (testemunhas, peritos e o próprio assistente quando indicado como meio de prova).
Falemos então desse outro sujeito processual – as testemunhas. Na nossa sala tradicional, elas sentam-se numa cadeira colocada à frente da “teia” que encerra o arguido, viradas de frente para o juiz e de lado para as partes, que não dispõem geralmente (nomeadamente os advogados de defesa e de acusação) de uma completa visibilidade do rosto das testemunhas por elas instadas. Por isso, justifica-se inteiramente a disposição italiana acima citada, quando fala da necessidade de o lugar das testemunhas ser visível tanto para o juiz como para as partes. A cadeira destinada às testemunhas deve situar-se ao centro, de forma a que a testemunha esteja frente-a-frente com o juiz e equidistante das partes e de todos perfeitamente visível e audível.
Por último, esse silencioso (por vezes nem tanto…) mas indispensável «sujeito processual» – o público. Não participando directamente no debate, a presença do público, melhor, a abertura da sala à presença popular, é um elemento estrutural de uma justiça democrática. Sem publicidade, a justiça não é digna desse nome. A publicidade é aliás um princípio adquirido desde a criação, com o liberalismo, do processo penal das garantias, e tem um claro sentido de controlo externo, de controlo democrático, da actividade dos magistrados. Em termos de geografia da sala, estes princípios obrigarão certamente a que o público não seja relegado para uma mera posição de “corpo presente”. A sua presença não deve ser meramente “alegórica”. O “povo”, não tendo evidentemente a faculdade de intervir na audiência, tem certamente o direito de ver e ouvir o que ali se passa. A sala de audiências deve, pois, ser construída em termos de esse direito ser efectivo.
Nos dias de boje, a publicidade da audiência não se pode, porém, restringir à mera presença de público. O interesse da audiência pode não ser meramente local, antes de âmbito regional ou mesmo nacional (para não dizer mais). Isto quer dizer que a publicidade da audiência significa hoje a possibilidade de divulgar pelos órgãos de comunicação social o que se passou dentro da sala. Significa consequentemente que é essencial conferir condições de trabalho aos “mediadores” da informação – os jornalistas. Necessário é pois conferir-lhes um espaço próprio, que lhes permita transmitir uma informação correcta e isenta.
Duas notas ainda sobre a comunicação social. A primeira é que parece seguro que uma informação correcta só poderá ser transmitida por profissionais habilitados, ou seja, com um mínimo de preparação jurídica. A formação adequada dos jornalistas e a sua credenciação para o acompanhamento da audiência são essenciais para o exercício da sua função. Por outro lado, publicização da audiência não exige de forma alguma as “transmissões em directo”, quer por imagem, quer mesmo apenas por via sonora. O julgamento que se desenrola na sala de audiência não pode ser dobrado por um outro desenvolvendo-se fora do seu espaço específico, que é o único que confere as garantias às partes para que a justiça seja feita. A justiça-espectáculo dos media é uma perversão da justiça democrática e a ela não podem ser feitas quaisquer concessões.
Um último aspecto tem a ver com a transparência. Esta ideia-força, estrutural numa justiça democrática, reporta-se a um extenso número de aspectos dos actos praticados na audiência, da leitura da acusação, passando pela reprodução oral das provas escritas contidas no processo, até à sentença, cuja motivação (não só de direito, como de facto) é indispensável para o controlo externo da função de julgar. O processo oral, acusatório e contraditório, que é o nosso, exige que tudo passe pela audiência, pelo debate, não havendo lugar para espaços recônditos ou penumbras processuais a partir da acusação.
Mas a transparência impõe não só essa exaustividade, como ainda outro aspecto — a identificação do julgador. Com efeito, o anonimato do juiz tem ressonâncias inquisitórias, ressonâncias do tempo do juiz inquisidor, o juiz sem rosto, transcendente e inacessível. A identificação do juiz, a personalização do tribunal, tem uma dupla função: por um lado, dessacralizante (a justiça é administrada por homens comuns investidos democraticamente naquela função) e, por outro, responsabilizante, na medida em que expõe mais facilmente a decisão do tribunal ao juízo crítico da opinião pública.
Isto implica que o juiz (bem como o magistrado do ministério público, para o qual valem igualmente as considerações expostas) esteja identificado na sala de audiências.





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