29 janeiro 2007
Aborto: Sim, Não ou Talvez.
Já se estava à espera disto. De acordo com os «Médicos pela Escolha», «A lei deve proteger a mulher de pressões em relação à sua decisão e penalizar qualquer pessoa, inclusive o progenitor, que exerça coacção, interfira de uma forma impositiva ou com chantagem na sua decisão».
Os mesmos senhores que pretendem ver as mulheres que abortam arredadas dos bancos dos réus pretendem agora substitui-las pelos papás recalcitrantes. Os mesmos senhores que se acolhem a uma ideia de liberdade absoluta, interior, quando se trata de justificar um poder de escolha imotivada, clamam por limites à actuação de terceiro quando essa actuação contende com as suas escolhas. Inconscientemente, invocam Rousseau e Hegel quando se colocam no lugar da mulher e acolhem-se a Mill, Locke e Hume quando se colocam nos sapatos do homem. Tu que contribuíste apenas com um remoto e aleatório espermatozóide, nem um pio. Estou-me nas tintas para os teus dilemas e para essa choraminguisse de quereres ser pai. Não tens nada com isto. This is women business. E se insistes, se dizes que me deixas, vais-te sentar banco e para ti não quero dessas medidas hipócritas de suspensões provisórias do processo e outras quejandas. Essas não são para quem escolhe. São apenas para quem pode escolher.
Do lado oposto as coisas não são melhores. Segundo CDS-PP, «no caso de uma lei que consagrasse o aborto livre, deveria ser concedido ao pai o direito a proteger a vida do seu filho, daí se retirando também as correspondentes obrigações». E para o movimento «Diz que Não», «a partir do momento em que são retirados ao pai quaisquer direitos na decisão de terminar ou não com a vida daquele filho abrem-se precedentes no direito da família que poderão ter repercussões graves no plano do poder paternal».
Tal como na posição dos «Médicos pela Escolha», as ameaças são veladas. Não se diz quais são as «correspondentes obrigações» que se retiram ao pai e quais os «precedentes no direito de família» que se abrem em termos de terem «repercussões graves no plano do poder paternal». Mas supõe-se que, no limite, o progenitor ficaria desonerado de assumir a paternidade, de contribuir com alimentos, etc. Como se vê, coisa absurda: a criança nasce e tem direito a um pai. Ponto final.
Não obstante o radicalismo implícito nestas posições, elas dão conta de um problema concreto e permitem sublinhar um ponto em que a lei vigente, suportada num modelo de indicações, se mostra, em meu modesto entender, singularmente equilibrada. Ao não sancionar a interrupção da gravidez como um direito da mulher ela permite que a vontade do progenitor seja considerada, ao menos reflexamente, até onde se julgou possível. A mulher pode abortar na mesma, é certo. Mas tem consequências, reais ou potenciais. O “sim” no referendo, é claro, terá como consequência afastar de plano os interesses do progenitor. Outorga à mulher um direito. E, na realidade, para usar (ainda que em sentido figurado) de linguagem jurídico-civil, um direito potestativo que coloca o progenitor na reversa posição de sujeição. Um tanto ironicamente – e ressalvadas as distâncias devidas – transporta para a mulher de hoje um direito que cabia ao pater de há 2000 anos: um ius vitae ac necis relativamente à prole.
É óbvio que esta retórica só por si vale o que vale. Há muitos e bons argumentos a favor do “sim”, de entre os quais destaco um que releva de considerações de política criminal e que se reconduz à falta de consenso social bastante em redor da incriminação (coisa fundamental, neste particular) e ao perigo de, por esta via, a manutenção dela, descambar em mero simbolismo penal. Do que li sobre este assunto, o argumentário de Pedro Caeiro, no Mar Salgado, afigura-se-me o mais sólido. Por essas e por outras, julgo que não é fácil ser-se demasiado assertivo entre o “sim” e o “não”. E pelo que me toca, não sou. Mas que o problema referido deve pesar na ponderação das soluções, eis o que me parece mais ou menos óbvio.